Consoada

É véspera de Natal.

As desvantagens de fazer a consoada na nossa casa é o trabalho que se tem e o dinheiro que se gasta. Mas o trabalho equilibra-se com a seleção do menu à nossa medida (vetei o Bacalhau com Todos) e com a estreia de roupa que não envolva necessariamente golas altas e forros polares, porque, cá em casa, sei que não vou ter frio. Já estive, assim, de vestido primaveril, a engomar a toalha de Natal, que a minha mãe bordou e me deu uns quantos Natais atrás, e os guardanapos de pano. O meu sentido, no entanto, está todo na Olívia, a nossa gata, que não vem dormir a casa há duas noites. Nunca pensei voltar a passar por isto, não com ela, que era tão caseirinha. Acho que alguém a levou, mas não quero pensar que, para fazerem o Natal feliz a uma criança, estragam o Natal a outras duas. Prefiro acreditar que ela foi só namorar, ou que ficou fechada numa garagem e que, não tarda, hão de dar por ela. Já afixámos cartazes, já pus anúncios, já contactei as associações da zona. Dou várias voltas pelas redondezas ao longo do dia e, de galochas calçadas, já me enfiei no caniçal em frente à casa. De carro, olho para as bermas, para a beira do lixo, ao lado dos contentores. Sei que isto pode não ter um final feliz.

É claro que, às pessoas, apetece-me fazer ghosting. Porque há sempre tantos julgamentos quando um animal se perde ou se magoa, sempre tantas acusações contra os donos que os deixam viver livres, que se recusam a prender gatos em casas nas quais as portas estão quase sempre abertas e nas quais, para que os donos possam entrar e sair como lhes aprouver, seria necessário fechar os animais em quartos, em jaulas. Sempre soube que era um risco que corria, já perdi uma gata assim. Então, e não aprendeste? E as pessoas, quando é que aprendem a meter-se na sua vida? Talvez o Pai Natal lhes dê um pouco de capacidade de não julgamento no sapatinho. Quanto a mim, para o Natal, só quero a minha gata de volta, não há prendas nem banquetes nem vinho que me consigam amenizar a angústia.

Agora, vou comer uma filhós. Só para não sentir que me falta tudo.

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Underwater love

Voltei hoje à natação, depois de quase três semanas sem ir. Não fui, porque me faltava o ar, e dentro de água é pior. Ou assim me diziam. Ouvi de várias pessoas: se tens ansiedade é melhor não ires para a água. O curioso é que, antes de ter deixado de ir, lembro-me de ter comentado que a natação me fazia bem para gerir o stress. Aquele inspira, expira ritmado, braçada, braçada, braçada, inspira, expira, braçada, braçada, braçada, inspira, expira ajudava-me a centrar, a esvaziar a cabeça de pensamentos, a focar-me naquilo. No entanto, houve uma altura em que me apercebi de que tinha medo de não conseguir tirar a cabeça fora de água a tempo. Ainda antes de saber que isto tinha um nome, assumi que era só mais um dos meus medos parvos. Olha agora para o que me havia de dar… Estou a nadar, numa piscina, e entro a pânico com medo de não conseguir virar a cabeça para respirar… Até que um dia acordei a meio da noite, na minha cama, sem conseguir respirar. E, bom, não tinha a cabeça debaixo de água.

Quando a coisa piorou fora de água, deixei de querer meter-me dentro de água. Comprei um fato de banho novo e uma touca a condizer e tudo, para me motivar, mas precisei do meu tempo.

Hoje, fui. Ponderei bastante tempo se haveria de explicar à professora o que se andava a passar comigo, para ela não me pôr a fazer aquelas respirações malucas que me fariam voltar a querer deixar de ir. Tive pudor de expor a minha vulnerabilidade a uma pessoa que mal conheço, medo que os colegas me ouvissem, que tivessem pena de mim, sei lá. Mas também pensei que, se nunca lhe dissesse, ela não me poderia ajudar a, literalmente, recuperar o fôlego. E, por isso, disse-lhe: não tenho vindo, porque tive uma grande crise de ansiedade, falta-me o ar e na piscina sinto que piora. E, pronto, não custou nada (bom, só um bocadinho), ela não fez perguntas a que eu não quisesse responder, adaptou o ritmo das respirações só para mim e ficou de pré-aviso para o caso de me dar a solipampa na parte sem pé.

Foi como se voltasse a aprender a andar depois de uma operação aos pés, devagarinho, piscina a piscina, pára para respirar e recomeça de novo. Mas a água estava quentinha, o meu fato de banho novo é confortável (já a touca…) e correu bem. Saí de lá triunfante como se tivesse conquistado o mundo.

Estou a melhorar. E adoro nadar. Era só o que me faltava ganhar medo à água.

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O estado das coisas

Para me animar, o meu marido preparou-me um pratinho de queijo e fuet e abriu um tinto que verteu para um dos copos de balão em que gosto de beber. Achei fofinho o gesto, mas a verdade é que nem sabia se me apetecia vinho. A coisa está preta, quando eu nem sequer sei se me apetece vinho; ou melhor, a coisa está mesmo feia se não ando a pensar desde as duas da tarde no copo de vinho que vou beber à noite.

Assim vai o estado das coisas.

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Falta de ar

Talvez haja uma justiça na mão que dá e depois tira. Talvez tenha o divino propósito de te ensinar alguma coisa, de não deixar que te acomodes nas fases boas da vida. Se tiveste um primeiro semestre espectacular, cheio de emoções fortes, amor e sucessos profissionais, pois, muito bem, aperta o cinto, porque te aguarda um segundo semestre que te vai arrastar em turbilhão na direcção oposta, tirar-te o ar do peito, sugar-te a energia do corpo e a vontade do espírito, um segundo semestre de tensão, conflito e mágoa. Vais-te lembrar de coisas que tinhas recalcadas, reprimidas, engavetadas no baú poeirento dos confins da memória, e vais ver-te aflita para tentar perceber o que fazer com elas, qual última depositária da batata quente que te queima os dedos. Procuras respostas. Voltas ao psicólogo. Viras-te, quase desesperada, para a espiritualidade e descobres nela um certo conforto, mas envergonhas-te. Procuras actividades que te limpem a alma e ponham a mente em standby, que não te façam pensar nas coisas. O trabalho não te traz paz, pelo contrário, deixaste de ter prazer nele. Queres mandar os clientes às urtigas, acabar com tudo, tirar um ano sabático e viver do ar e do sol. Lembras-te do blogue, pensas em voltar a escrever, talvez te ajude a arrumar ideias, em jeito de terapia, mas deixaste de te identificar com o nome, já nem sabes se alguém te lê, e quem, e isso é coisa para te aumentar a ansiedade. Não queres que te volte a faltar o ar agora, este fim-de-semana não, a tua filha faz 9 anos. Fica para depois, pensas nisso depois. Agora, bebe o vinho.

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Nick

Toda a entrevista é espectacular, profunda e inspiradora. Mas, de tudo, aquilo que mais me comoveu foi o que Nick Cave sobre o que levamos connosco quando morremos e o que largamos quando sobrevivemos aos nossos entes queridos (neste caso, o ensimesmamento que deixou de fazer sentido após a morte de Arthur).

O artigo do Expresso também está fofinho, mas não passa de um resumo mal amanhado do New York Times.

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