Uma página de cada vez

O cerco começa a apertar.
Uma sucursal de um banco ao pé do meu escritório fechou; no agrupamento de escolas das minhas filhas alunos, professores e auxiliares começam a cair, que nem peças de dominó. Quase parece março, em que a cada hora nos chegavam novas e cada vez mais aterradoras notícias. Todos os dias, há alguém que conhece alguém que testou positivo. Uma mãe de uma colega da irmã de uma colega da mais velha. É pequena esta terra, em que parece que toda a gente se conhece, que toda a gente esteve com toda a gente, mesmo quando sabemos impossível darmo-nos todos com todos. Estamos a chegar àquela fase em que pensamos quando  ― e já não se ― é que nos vai calhar a nós.

Tirando isso, tento revestir a minha vida da normalidade que lhe quero dar. Li “A História de Uma Serva” em cinco dias, fruto de um fim de semana prolongado sem eventos sociais, e iniciei a leitura em família de “O Feiticeiro de Oz”, que comprei na Lello, um capítulo por noite. Gosto de ouvir a Inês a ler, acho que lê muito bem, não é por ser minha filha, e surpreende-me a capacidade de a Alice, seis anos, reter a história de um dia para o outro, mesmo que sempre me pareça que não está a prestar a mínima atenção à leitura… De resto, ando a debater-me com “O Quarto de Giovanni”, que me parece tão despido de toda a profundidade que pensava encontrar em James Baldwin. É culpa das expectativas, eu sei. Aconteceu-me o mesmo com o Manuel Vilas, que é capaz de ter sido a maior seca lamechas que me passou pelas mãos nos últimos anos.

Trabalho muito e durmo mais ou menos, enquanto me preparo para acolher novas mudança na nossa vida. Uma coisa que este ano nos ensinou é que não vale a pena ter expectativas, seja na vida seja com Baldwin, e que pouco mais nos resta do que ir lendo uma página de cada vez.

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Dilemas

A Inês conta, sem qualquer ponta de queixume, mais como uma constatação dos factos, que os colegas passam os intervalos no seu rectângulo agarrados ao telemóvel, só ela é que não, porque não tem um telemóvel com cartão SIM, o que é basicamente igual a não ter. Os colegas têm cartão e dados móveis e redes sociais, até conta no Instagram com tão tenra idade, e depois passam os dez minutos de intervalo com a cabeça enfiada no aparelho a trocar fotos entre si, a jogar ou a fazer sabe-se lá o que é crianças de dez anos fazem na internet. Imagino 23 miúdos, cada um no seu canto, sozinhos, a trocar a convivência com os colegas pela companhia do telefone e penso que humanos são estes que estamos a ajudar a criar? Os pais não terão certamente visto o documentário The Social Dilemma e a escola é capaz de ter mais que fazer do que proibir o uso do telefone ou desligar a wi-fi, mas a mim preocupa-me a forma desenfreada como a internet entrou nas nossas vidas. Estamos a assistir à generalização de um comportamento viciante e a dar o nosso consentimento para isso. Em comparação, o facto de terem de deixado de medir a temperatura à entrada não me parece, de todo, grave.

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Medir a felicidade

Resumo da primeira semana de aulas: é capaz de não ter sido mau de todo.

Apesar de todas as diferenças e restrições à liberdade de movimentos que foram impostas às nossas crianças neste ano lectivo. Apesar das máscaras, dos rectângulos demarcados no chão a que têm de se limitar nos intervalos. Apesar da não partilha de objectos pessoais.

Apesar de tudo, a Inês continua a fazer o que sempre fez na escola, a ir almoçar ao refeitório, a ir para o ATL e, se faz bom tempo, a brincar “aos sobreviventes”. Adora a professora de Português, já deu uma alcunha ao de EV e diz que aquecer em EF com cinco voltas ao campo é maior tortura que ter de usar máscara o resto do tempo.

Eu ainda ando às voltas com os acrónimos das disciplinas e não consigo perceber bem a diferença entre TIC e ET, não é tudo tecnologia? Espanta-me o número de livros que ela tem de levar para a escola todos os dias, se no meu tempo não era cá preciso livro para Educação Visual… Imagine-se um livro em Mecanotecnia, se aquilo já era chato como o diabo.

A mais nova também adora ir para a escola; já aprendeu a letra i e brinca com a prima nos intervalos. Ficou triste porque só dois amigos votaram nela para ser delegada e, por isso, agora já não é a primeira da fila, porque é a delegada que vai à frente a liderar o pelotão. A comida do refeitório é sempre boa e a sopa, a segunda melhor do mundo.

Como já não fazem fila à entrada para medir a temperatura, perguntei-lhe se ainda medem (pois, na escola da irmã deixaram de medir, terá o termómetro avariado?!) e ela respondeu com um meneio de cabeça baralhado, que me deixou na dúvida: sim ou não, medem ou não medem? Explicou-me: «Agora, as auxiliares medem a nossa felicidade».

E eu ri-me.

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Tente novamente mais tarde

O meu Feedly anda depauperado. Tirando a Calita e a Mãe Imperfeita, com a sua rubrica hilariante, já ninguém escreve regularmente num blog. Nem eu, que não punha os pés aqui desde Junho. Fui de férias, é verdade, e tenho andado à procura de solo firme na era do Novo Normal, mas o facto é que eu e dois terços da blogosfera substituímos os posts por instantâneos simples e rápidos do Instagram. Há quem até publique autênticos testamentos como legenda de uma foto, mas depois actualizar o blog está quieto. Sou capaz de já ter feito o mesmo.

Hoje, ao ver que o À Paisana tinha voltado a escrever (e logo dois posts numa semana), deu-me uma vontade inesperada e inexplicável de voltar a escrever no meu. Graças a ele, descobri As Senhoras da Nossa Idade que me levou a outros blogs que – milagre! – têm escrito com relativa regularidade, ou seja, o último post não data de 2016.

Gosto de ler blogs, e também gosto de ter um. Mas ultimamente a falta de tempo ou de vontade de esmiuçar a minha vida em praça pública (como se não houvesse outra forma de ter um blog) tem-me afastado deste canto. O meu Instagram, contudo, mantém-se prolífero, o que, se virmos bem, revela alguma falta de coerência. E ando sempre nisto, escreve, não escreve, retoma o blog, não retoma, e todas as tentativas de escrever com regularidade têm caído em saco roto. Será esta mais uma?

Seja como for, gostava de voltar a ler blogs e cansa-me abrir o Feedly e ver um buraco negro. E vocês, ainda lêem blogs? Quais? Vá lá, contem-me tudo.

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