Já vais tarde

Aos poucos, as próprias coisas vão-se fartando da vida neste ano louco. Foram os interruptores da luz os primeiros a falhar, uns a seguir aos outros, como se tivessem combinado deixar-nos às escuras progressivamente; depois, foi a caixa do correio literalmente a desfazer-se, a tampa que se atirou para o chão, deixando à chuva as notícias que nos chegam do mundo; o ferro de engomar veio a seguir e quando chegou a vez da máquina da roupa, levei as mãos à cabeça, em pânico que se seguisse a máquina do café.

Há qualquer coisa de fatídico quando as coisas desistem da vida, especialmente quando isso acontece no final de um ano merdoso, altura em que nos pomos a fazer contas aos sorrisos que ficaram escondidos atrás das máscaras, aos abraços apertados que reprimimos, às viagens que se ficaram pelos livros e ao sonhos que voaram nos balões largados nas festas que não fizemos. Como vos compreendo, coisas, não pensem que não. Também eu estive perto de atirar a toalha, cansada que andei até aí ao Natal, sem paciência para nada. Andas a gritar muito com as meninas, disse-me ele.

Ajuda-me quando me ponho a arrumar, não as coisas corriqueiras do dia a dia, as meias, os casacos que caíram do bengaleiro, a loiça, mas as grandes arrumações, como a roupa da nova estação ou a estante dos livros. Dá-me uma espécie de propósito, é terapêutico e mindful. No meu primeiro dia de férias depois de entregar o livro, pus-me a arrumar os livros da estante da Area. Tirei-os todos da estante, limpei-lhes o pó, agrupei-os por autor, nacionalidades, zonas geográficas, os clássicos numa ponta, os técnicos na outra. Está muito cheia, disse-me. Pedi-lhe uns dias para se habituar, que quando eu voltar a precisar de me acalmar logo os arrumo como estavam. Já mais calma, no segundo dia de férias, fui sozinha almoçar à beira-mar, com um livro e um copo de vinho.

O ano acaba amanhã; as coisas foram arranjadas ou substituídas; a máquina do café não avariou; tenho uma camisola nova para a festa de passagem de ano que não vou fazer e, na minha cabeça, soa uma espécie de mesmo refrão: já vais tarde, 2020.

 

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Perdas

Houve uma altura, no final do verão, em que achei que, afinal, este ano não ia ser assim tão mau e que me ia ficar na memória também por outros motivos que não simplesmente a pandemia que nos virou a vida de pernas para o ar. Tinha engravidado do nosso terceiro filho depois de dois anos a tentar. Após a surpresa inicial – porque, apesar de termos passado algum tempo a tentar, para o fim já tínhamos desistido e foi neste estado de descontracção que a coisa se deu –, ficámos muito felizes e foi inevitável não começar logo a fazer planos e a imaginar formas originais de contar a novidade às nossas filhas e ao resto da família.

Mas não houve tempo. Perdi o bebé às oito semanas e, também pela forma desumanizante como fui tratada no SNS (agora vai para casa abortar sozinha e sem apoio, e volta cá daqui a dois dias para ver “se já saiu tudo”), entrei num buraco fundo, escuro e húmido, do qual consegui sair graças à vida à minha volta que chamou por mim e me deu a mão. Já reflecti muito sobre tudo, revisitando todos os dias cada palavra da médica, os pressupostos – tão errados – em que baseou o atendimento que me prestou, a forma cruel como assumiu que eu já sabia o que estava a acontecer com o meu corpo, que inclusivamente o desejaria e para o qual teria contribuído, e como me tratou, a mim, como mais um número e à vida que se desenvolvia dentro de mim – e agora se desfazia – como um determinante indefinido: volte cá daqui a dois dias para ver se já saiu “tudo”, palavras que ecoam continuamente na minha cabeça, como um disco riscado, volte cá daqui a dois dias para ver se já saiu tudo, quando estou a tomar banho, quando estou a conduzir, quando estou a jantar, volte cá daqui a dois dias para ver se já saiu tudo, o meu terceiro filho resumido a um tudo-nada, um mero bloco de coágulos e tecidos indesejáveis, qual quisto ou tumor, uma massa inconveniente, maléfica, maligna que, no final de três dias numa espécie de trabalho de parto caseiro, me haveria de escorrer pelas pernas sem qualquer pré-aviso da forma que poderia ou não ter ― e uma das muitas conclusões a que chego diariamente é que talvez nunca deixe de ouvir estas palavras a ressoarem na minha cabeça.

Posto isto, não me consigo lembrar de coisas boas que compensem o ano de merda que tive. É claro que tenho um tecto para viver, duas filhas maravilhosas, um homem espectacular que esteve sempre ao meu lado neste momento difícil, não me falta dinheiro para o que é preciso nem desafios interessantes no trabalho. Tenho razões de sobra para estar grata pela vida que tenho, mas a minha percepção de 2020, a imagem que fica daquilo que foi o meu ano, daquilo que eu vivi e senti é, fria e simplesmente, uma amálgama de perdas: perda de liberdade individual, física e social imposta pela pandemia e a perda de esperança inerente, perda de um ente querido no final de Novembro, e o sentimento excruciante que fica após a perda de um filho (eu sei que só tinha oito semanas, mas o vazio que me deixou na barriga não é menor por isso).

Portanto, não tenho motivos para festejar o ano que passou – nem os quero arranjar para ser sincera. O que aconteceu aconteceu, é um facto inegável e nada do que eu possa fazer ou dizer vai mudar aquilo que se passou, a forma como aconteceu e o peso que deixou em mim. A única coisa que posso fazer é aprender a viver com a dor, a geri-la em mim, a doseá-la até que seja suportável. Transfiro tudo isto para a vida prática, para a máquina incansável do dia a dia, dos prazos e das datas que me fazem avançar. Tenho um livro para acabar de traduzir até ao final do ano, tenho uma mini festa para organizar à minha filha de quase dez anos daqui a três dias, tenho uma noite de Natal em que me deixam ir ver os meus pais e tenho o Ano Novo que, se calhar, vou passar a dormir. O que eu não quero é criar grandes expectativas para o novo ano que se avizinha. No ano passado estava cheia delas e foi o que se viu.

(Ele acha que preciso de falar com o psicólogo. Talvez vá, para o ano. Para o ano há de ser melhor.)

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Sem alarde

Estava a ouvir o Fala com Ela com o Miguel Esteves Cardoso e, às tantas, ele fala sobre a utilidade da tristeza, que serve para nos sentirmos vivos e devemos abraçá-la para sentirmos que ainda conseguimos sentir. É o meu resumo, ele não disse isto assim, mas daquilo que os outros dizem nós retiramos sempre aquilo que nos convém.

Nos últimos dias, tenho-me sentido uma espécie de traidora do meu próprio luto. Depois de duas semanas, já estava a tentar fazer yoga, já tinha voltado aos meus sumos verdes; estive apenas 20 dias sem aparecer nas redes sociais, pelo menos não com publicações próprias, e quem me vir na rua já não diz que carrego um peso às costas. Já não sinto tanto que me foi tirada uma coisa; agora sinto que foi aquilo que foi, uma inevitabilidade para a qual a ciência ainda não tem explicação.

Mas como contabilizar o luto? Ou melhor, o luto contabiliza-se? Há um número mínimo de dias durante os quais temos de estar tristes para que a nossa tristeza seja validada?

Depois ele fala sobre a necessidade de escrever para chamar a atenção. Mas eu tenho pensado nela como uma necessidade de cicatrização. Chamaria a atenção se fizesse alarde destes posts nas redes sociais. Como não faço, não sei quem é que cá vem, mas desconfio que seja ninguém. E acho que está bem assim. 

Seja como for, apetece-me retomar a emissão normal da vida. Tenho podcasts e séries para recomendar. Que a vida tenha sempre uma parte mundana onde nos possamos encher de ruído branco (mesmo, especialmente, em confinamento) .

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Quase tão bem

 

Tenho alturas do dia melhores do que outras, mas tenho truques, como focar-me nas eleições americanas ou preencher o tempo com algum item da minha lista mental quando chega aquela altura do dia depois do trabalho e do lanche das miúdas e dos trabalhos de casa e antes do jantar, em que ele normalmente vai correr e as miúdas vão brincar e eu ― que já não tenho gavetas para arrumar, porque já as arrumei todas, o que não é verdade, porque há sempre qualquer coisa para arrumar ― me encontro sozinha com o meu desgosto, levanto a camisola e olho para a barriga disforme que agora é só mesmo isso.

Há dias mais fáceis do que outros, especialmente porque ainda sinto uma bola na garganta que me queima e sufoca, incandescente com todas as coisas que não disse àquela médica que me atendeu. Todos os dias, revisito aquela conversa, as insinuações, a notícia dada de chofre como se eu já soubesse. Depois simulo na minha cabeça um novo encontro, em que lhe digo das boas, ou uma carta à direção do hospital, ou uma crónica de divulgação pública a denunciar a desumanização em torno do aborto espontâneo. Nada disto me faz bem, eu sei, mas não consigo evitar.

Fora isso, vou estando bem. O trabalho ajuda. As pequenas coisas também, o que parece um grande cliché. As minhas filhas, sem saberem, têm sido cruciais. Ele, mesmo que já não falemos muito sobre isso. E a minha grande força de vontade que é o meu castelo. Precisei do meu luto, mas já me estou a levantar.

Lembrei-me desta música de Ornatos. Já na altura, quando ainda não sabia que há desgostos que deixam mais marcas do que os de amor, sentia que tinha sido escrita para mim. Continuo a sentir o mesmo.

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Um dia, talvez seja capaz de falar sobre isso

 

Os dias depois de uma insónia têm tudo para correr mal, mas hoje foi um dia bom, pelo menos a partir da tarde. Para tal contribuiu uma série de coisas que passo a listar por ordem cronológica: consegui grelhar uma dourada do mar sozinha, eu e o grelhador, e não ficou crua nem demasiado seca; a minha filha mais velha fez-me um truque que me fez rir alto e eu não estava à espera de me conseguir rir alto tão cedo; vieram finalmente arranjar as portadas que, de tanto baterem com o vento, deixaram de se fixar, de se fechar ou de abrir, consoante o caso; também arranjaram a maçaneta da porta da cozinha e, de repente, parece que temos uma casa nova; os meus cunhados fizeram uma limpeza aos livros que já leram e não querem manter, ou não leram e não querem ler (também tenho uns quantos desses) e deixaram-me resgatar os títulos que me interessassem, o que me deixou bastante feliz como só uma mão-cheia de livros novos consegue; mudei, pela enésima vez, de sítio os móveis do quarto da costura/das brincadeiras/de hóspedes porque mudo sempre o sítio dos móveis quando preciso de arranjar um propósito e agora ando muito necessitada de um propósito. Ainda não estou satisfeita com o resultado, mas ter a meta de destralhar e organizar a minha mesa da costura é capaz de ser aquilo de que preciso para evitar dar por mim parada a olhar para o infinito, a sentir o vazio que ficou na minha barriga. Um dia, talvez seja capaz de falar sobre isso.
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