Quaresma

É terça-feira de Carnaval e as minhas miúdas não se mascararam. Acho que ninguém se lembrou, só ontem quando vimos uns palhaços no nosso passeio higiénico. Não devem ter sentido muita falta, porque a Inês disse que já tem vergonha de se mascarar e a Alice não se mostrou entusiasmada quando eu disse que podia ir ver se o fato da Ana do ano passado ainda lhe servia, mas a minha mãe acha que lhes está a ser roubada uma parte essencial da infância. Bom, não vamos falar no que é que realmente lhes está a ser roubado com esta pandemia e o estudo em casa, mas podemos falar no que me está a ser roubado a mim: paz de espírito. Sinto que as redes sociais e a dependência do telemóvel que desenvolvemos (posso falar por todos?) durante este isolamento contribuem deveras para isso. E como amanhã começa a quaresma, decidi, assim de impulso, fazer uma quaresma de detox digital. Apesar de não sermos religiosos, eu e o Tiago costumávamos fazer aquilo a que chamávamos de “quaresma infiel” – basicamente, era aproveitar 40 dias estipulados por outras pessoas (contados a partir da quarta-feira de cinzas) para implementar algum hábito ou deixar outro. Fizemos coisas giras como 40 dias sem televisão, 40 dias sem doces, 40 dias sem álcool (nesta eu não entrei, brincas!), e agora vou fazer 40 dias sem redes sociais. Também podia fazer 40 dias sem café, porque a máquina vai hoje para reparação e não acreditei quando me disseram que só ia demorar 7 dias úteis…

Não sei se consigo totalmente, porque há certas coisas de trabalho para as quais me dá jeito estar ligada, mas já vai ser uma ajuda simplesmente apagar as apps do meu telefone. Depois o resto logo se vê.

Vou continuar aqui no blog, porque me faz falta – e faz bem -, mas não vou avisar sempre que publicar, portanto vão ter de fazer como antigamente e vir cá ver (também há coisas práticas como o Feedly, mas também isso acho que já está ultrapassado).

Para celebrar, deixo aqui uma foto muito pouco instagramável das melhores papas de aveia que já fiz e das quais não vou dar a receita.

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Inquietações

Primeira semana de aulas online. Tudo correu bem: o material informático não falhou, os links para o Zoom estavam todos certos, conseguimo-nos equilibrar sob a fina corda que liga a miríade de plataformas e apps que nos foram sugeridas para entregar trabalhos, entregámos a horas o que era pedido, incluindo coisas simples e rápidas de fazer por miúdos em aulas online e pais trabalhadores, tais como pesquisas sobre lendas e ativistas dos direitos humanos e uma carteira feita a partir de uma embalagem de leite, executada unicamente pela aluna, claro, sem ajuda nem orientação do encarregado de educação, como é óbvio. Check.

Final do dia de sexta-feira: sentimento de dever cumprido, vai de abrir uma garrafa de tinto para comemorar termos chegado ao fim de uma semana que mais pareceu um mês e o que é que acontece? Uma notificação de e-mail. E logo a seguir outra. Os professores, que não nos deixam esquecer que desta vez até se prepararam bem e já dispõem das infraestruturas necessárias: Senhores encarregados de educação, aqui estão os planos de aulas para cumprir a partir de segunda-feira, não obstante ser sexta e a malta só querer esquecer o mês que passou nestes cinco dias, não senhores, tenham um bom fim de semana, se conseguirem. E eu, de copo de vinho na mão, sabem o que fiz? Pois nada, fechei a aplicação do e-mail e fui-me entreter nas redes sociais, mas cada vez me entretenho menos; em vez disso, o que aconteceu foi que me inquietei ainda mais.

Inquietei-me com as redes sociais e com as pessoas que as frequentam mais a sua merda de perguntas a que ninguém quer responder e as suas opiniões que ninguém pediu. Onde compraste o casaco? E a mala? E o batom? E a receita, dás-me? Eu cá não concordo. És uma mãe esforçada, só é pena que isso não chegue. Inquietei-me com as fotografias filtradas de pais satisfeitos a fazer pão de sete cereais com os seus muitos filhos reluzentes. Inquietei-me com os diários de confinamento que mais parecem testamentos para os quais não há saco. Inquietei-me com a fertilidade das outras que as leva a terem filhos uns atrás dos outros como se fosse só estalar os dedos.

Depois, inquieta-me que isto me inquiete, porque eu devia era ficar feliz que os outros consigam aquilo que me escapou das mãos, e sinto-me uma má pessoa, rancorosa e ressentida, incapaz de sentir ternura com fotografias de irmãos que poderiam ter sido os meus três, duas meninas, um menino, todos tão parecidos uns com os outros, ou então não, porque a do meio não se parece com ninguém. Inquieta-me a culpa que sinto por sentir isto e inquieta-me que tenha de reprimir a vontade visceral de virar a mesa em que estou a fazer o puzzle para me acalmar ao invés de ir acabar a garrafa de vinho, sentada atrás da porta da casa de banho, a encher-me de pena de mim enquanto relembro mil vezes o que aconteceu e me pergunto, como se soubesse a resposta, porque haveria de me acontecer aquilo a mim. Depois recalco para não me tornar repetitiva, o que também me inquieta.

Dava-me jeito o dinheiro, mas está visto que, se calhar, está na hora de voltar ao psicólogo.

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diário 2021 #3

Retiro o que disse no outro dia. Ainda mal que fui cortar o cabelo antes de os cabeleireiros fecharem, porque continua uma bela merda. Se não andar com ele sempre apanhado, sinto-me com os 40 que eu, aos 20, achava que ia ter, não os 40 que tenho agora, mas uns 40 muito mais cansados e acabados. Felizmente, estamos confinados, e esta é a única altura em que me ouvirão dizer o que acabei de escrever, porque pelo menos assim não há muita gente que me veja neste estado.

Hoje, estou de férias. É claro que já tive de responder a uns e-mails e enviar um orçamento, porque é difícil estar de férias quando só nós é que sabemos que estamos de férias, mas prometi a mim mesma que, depois da empreitada do último livro (tradução e revisão de um colosso de 600 páginas que só terminei ontem) iria dar-me a mim mesma um descanso. Então fiz as coisas que as pessoas fazem quando estão de férias, como ir fazer análises, ir meter gasolina e limpar a gaveta dos talheres. Também fiz uma atividade com as minhas filhas, a quem eu, ultimamente, só via de fugida por causa do tempo que passei à volta do livro e do cansaço generalizado que se apoderava de mim quando não estava de volta do livro. Criámos umas colagens em cartolina: era para ser só uma cidade, mas elas no fim quiseram acrescentar uns balões a voar e fogo de artifício a desejar um feliz 2021. Penso que seja o seu desejo (in)consciente de que este ano seja melhor, ou uma representação da passagem de ano que podíamos ser tido ou, simplesmente, foi do que se lembraram para encher os espaços vazios.

Acabei Felicidade, do João Tordo, de que gostei bastante, e comecei Rapariga, Mulher, Outra, da Bernardine Evaristo. Custou a entrar, aquela falta de pontos finais há de ter uma explicação, mas agora já acho que é capaz de vir a ser um dos livros do meu 2021.

E, com isto… Sei que já estamos em Fevereiro e que 2021 não começou da melhor forma, mas podemos sempre pensar que vai melhorar. Ou isso, ou aquele chá de cânhamo e ashwangandha que comprei no outro dia sempre faz efeito… Feliz 2021.

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Como mudar o mundo

Não tenho um discurso político, nunca tive. Houve uma altura em que me militei num partido, depois de ter andado nas ruas a recolher assinaturas para a constituição do mesmo partido e de ir a reuniões e conhecer gente com um discurso político muito mais sistematizado e enraizado do que eu. Acabei por deixar o partido, porque não tenho perfil para ações políticas. Não vou normalmente a manifestações; talvez tenha ido a duas ou três em toda a vida. Sou pouco revolucionária, e quando digo pouco, na verdade, o que quero dizer é nada. Às vezes, penso que tipo de pessoa seria se tivesse vivido o período pré-25 de Abril. Seria como o meu pai, que distribuía panfletos do Partido Comunista na clandestinidade, ou mais como a minha mãe, que mesmo não gostando, calava e comida, com a fotografia de Salazar na parede da sala de aulas a vigiar-lhe a conduta?

Ainda assim, não é preciso ter um espírito subversivo para ter convicções e eu soube que era de esquerda numa aula de História do 12.º ano. Nesse dia, ao jantar, anunciei aos meus pais: eu acho que sou de esquerda, o que é que vos parece? O meu pai, a quem eu, na altura, ainda desconhecia o histórico da luta, engasgou-se. Conversámos sobre isso, acho que o deixei orgulhoso.

Com o passar dos anos, mantenho as minhas convicções, sou de esquerda, sem no entanto me cingir a este ou àquele partido, mas não discuto política. Primeiro, porque não sei discutir política. Segundo, porque me enervo. É o mesmo com as touradas. Sendo um assunto que me desgasta tanto, optei por deixar de falar sobre isso. Em casa, digo às minhas filhas que é uma barbárie, mas na presença de outros adultos com opiniões contrárias à minha, opto por não aprofundar a conversa. Cobardia? Talvez. Autopreservação? Sem dúvida. Qual é a minha contribuição para acabar com as touradas? Assim, de repente, não vejo nada para além de educar duas mulheres na mesma linha de pensamento que eu. E isso já é muito.

No entanto, há um dia em que aparece um partido assumidamente de extrema direita em Portugal e que ganha uma representação tal nas eleições que não há como não o sentir como uma ameaça. Uma ameaça à liberdade, à tolerância, à união entre os povos, ao amor, à forma como as mulheres são vistas (e nem sequer estou a falar de feminismo, estou mesmo no nível mais básico de todos), à paz. E as coisas começam a mexer cá dentro.

Passei o dia todo desconfortável, no rescaldo das Presidenciais, a digerir a situação de viver num país em que 468.732,99 pessoas votaram no fascismo. Mais de mil na freguesia onde vivo. Estas pessoas não podem simplesmente ser todas burras e iletradas, e também não acredito que fossem todos votos de protesto. O Vitorino Silva servia muito bem para voto de protesto e é mais inofensivo. Mas será que estas 468.732,99 pessoas têm noção de que votaram no racismo, no machismo, na xenofobia, na homofobia, no poder policial absoluto, na prisão perpétua (pena de morte, olá?), será que conhecem suficientemente a História, será que não sabem que Hitler, antes de fazer o que fez, também dizia o que as pessoas queriam ouvir, também “até dizia umas verdades”?

Pensei, durante o dia de hoje, no que é que eu posso fazer mais para mudar tendência, sem ser com o meu voto que, apesar de ser extremamente importante, só conta de quando em quando. Posso, claro, usar as redes sociais, posso usar este blogue, mas também posso começar a militar por um mundo melhor na minha esfera pessoal. E talvez a minha atitude para com as pessoas com que lido pessoalmente seja mais importante do que palavras atiradas ao ar no Facebook. Oiço tantas vezes expressões racistas, umas em que as pessoas nem se apercebem de que o estão a ser, outras que são mesmo propositadas. Decidi que não me vou calar mais. Não custa nada ir fazendo uns reparos inofensivos “não fales assim das pessoas”, “não digas preto”, “as pessoas não são macacos”, e entrar numa discussão pacífica, deixando clara a minha opinião, não me calando, mas sem sacar das pistolas. Não é preciso ser aborrecida e insistente, não é preciso enervar-me, mas também não é preciso continuar calada, como se nada disto me afetasse.

Por isso, a minha primeira ação por um mundo melhor vai ser deixar-vos aqui o link para um podcast sobre racismo que ouvi há uns meses e que me deixou uma marca profunda. O podcast tem muito que se lhe pode apontar, há maneirismos quer do entrevistador quer da entrevistada que é preciso ignorar, e haveria muito mais a explorar sobre o tema, mas eu desconhecia alguns dos conceitos abordados e fiquei muito mais desperta para a questão do racismo. Independentemente de vos deixar desconfortáveis, de não concordarem com tudo, de não se reverem, acho que deviam ouvir e/ou ver a entrevista do Diogo Faro à Nuna. Aqui ou em podcast.

Não passarão.

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Copo meio cheio

Eu sei que é pelo melhor e blá, blá, blá, mas não consegui evitar uma pré-crise de ansiedade quando percebi, hoje de manhã, que o fecho das escolas era mesmo iminente e que ia haver a segunda temporada do Estudo em Casa numa casa perto de si.

Como tento ser uma pessoa positiva, passei a manhã a fazer uma lista mental das coisas boas em não haver escola presencial e estarmos todos confinados em casa em pleno inverno, e pelo facto de o PM ter anunciado que, durante os próximos 15 dias, os meninos vão ficar de férias, sem a macacada das aulas zoom, a lista afigurou-se-me um bocadinho mais simpática.

Coisas boas do confinamento sem estudo em casa, por ordem cronológica:

  • Não é preciso levantar-me às 6:50.
  • Não é preciso ir ao pão às 7:30.
  • Não é preciso acordar a Alice e contornar as dezenas de “Não quero” com a destreza de um trapezista do Cirque du Soleil.
  • Não é preciso passar na escola para dar o pão à Inês às 8:50 porque, entretanto, a padaria fechou e o minimercado só abre às 8:00, hora a que já teria de estar na escola.
  • Poder passar o dia de roupa confortável porque agora é que não tenho mesmo de sair de casa.
  • Não há Estudo em Casa.

E, bom, parece que a minha lista das coisas boas acaba às 9:30. Vou ter de me esforçar mais um bocadinho.

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