O primeiro mergulho [curso de mergulho #3]

Sobrevivi, não foi preciso reanimar-me nem chamar a polícia marítima, o que anula o disposto anteriormente. Os meus escassos pertences continuam, portanto, na minha posse.

Não aconteceu a)

– ou seja, não entrei em pânico; não me assustei com os peixes nem com a floresta de algas nem com as manchas escuras lá ao fundo, que talvez fossem rochas, talvez não; não chorei, nem antes, nem durante, nem depois; não fiz figuras tristes, para além das esperadas de quem ainda não consegue regular a flutuabilidade, ora subo demais, ora bato com a barriga no fundo, ora fico a flutuar de lado, ora me viro e pareço um escaravelho que não se consegue voltar a endireitar, deve ter tido a sua graça, se eu pudesse, ter-me-ia rido;

mas também não aconteceu b)

– não me senti una com o ambiente aquático coisa nenhuma, porque estive demasiado concentrada em sobreviver. Se me perguntarem, não sei que peixes vi, tirando o sargo atrevido que me veio bicar a máscara, mas isto também pode ter sido tudo fruto da minha imaginação. Sei que às tantas tive frio e que me fartei de arrotar. Sei os exercícios que fiz bem e aqueles em que me atrapalhei, que superaram em número os primeiros. Tive um pequeno contratempo com o insuflador, que é o equipamento que regula as descidas e subidas controladas, mas resolveu-se, ou resolveram-no por mim, não teve consequências graves, além de uma dor de cabeça momentânea (porque, felizmente, estava a pouca profundidade) e não foi o bastante para me tirar a vontade de voltar.

O resto do dia, passei-o tranquila, sem aquela pressão no peito que senti da primeira vez. Afinal, lá em baixo, não há nenhum polvo gigante das Vinte Mil Léguas Submarinas para me apanhar. Os monstros estão todos acima do nível do mar, não é preciso inventar criaturas novas. Nem quando andei no meio das algas, a reboque do instrutor, que depois me disse que eu nadava como na natação (e então?) e ali não é para nadar como na natação, é para nadar como no mergulho (ah…), nem nessa altura tive medo. Ainda pensei, admito, que me podia aparecer pela frente alguma moreia feiosa com aqueles dentes saídos, mas foi um pensamento que veio e foi, tal como dizem que se deve fazer na meditação e eu nunca consegui.

O fundo do mar talvez seja o melhor sítio para praticar mindfulness. Não pensei em mais nada, além da minha sobrevivência. Inspira e expira, respira rítmica e calmamente. Segue o instrutor, faz o que te manda, executa os exercícios, repete, respira. Não pensei em trabalho, não pensei em compromissos, não pensei nas filhas, nem no marido, nem na gata, nem na mãe, nem nas listas, nem nas dores. Estive simplesmente ali. E, sempre que me atrapalhava, só tinha de parar e respirar. Parar e respirar. Talvez seja um bom conceito a pôr em prática à superfície.

E, no fim, já no barco, quando regressávamos a terra, passámos por uma família de golfinhos-roazes. Eram muitos, para aí uns vinte, havia uma cria. Parámos o barco e ficámos a vê-los. Fizeram as cabriolas que acharam que merecíamos ver, até se fartarem e desaparecerem nas águas fundas. Foi muito bonito e lembro-me de ter pensado, só pode ser um bom presságio para os restantes mergulhos que me esperam.

Ou não, porque estes golfinhos mostram-se muito por estas bandas, mas, bom, mal não faz romantizar um pouco.

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Testamento [curso de mergulho #2]

Estou a duas horas de fazer o meu primeiro mergulho no mar. Só tive conhecimento disto ontem, ao final do dia, o que não me deu muito tempo para stressar. Fiz uma refeição leve ao jantar, sem álcool nem alimentos produtores de gases (é que debaixo de água, com a pressão, todo o ar que existe dentro de nós se comprime e expande…), preparei as coisas, fato de banho da natação, toalha daquelas tipo túnica para não ter frio enquanto limpo e arrumo o equipamento, e deitei-me cedo. Não me sentia nervosa, mas de qualquer forma tomei o calmante que tenho para casos SOS e que garante que durmo bem.

Dormi bem. Sonhei com a Olívia Rodrigo e não com o mar, o que é sinal de que a minha mente esteve ocupada a processar a histeria da minha filha mais velha quando soube que a sua paixão musical vem a Portugal para o ano, em vez de antecipar a minha ansiedade.

Há duas coisas que podem acontecer lá em baixo: a) entrar em pânico; b) sentir-me estranhamente calma e que eu e o ambiente aquático somos um só. Aposto mais na primeira. Mas como já me conheço, também sei que me vou conseguir controlar e só vou chorar no carro, ou em casa, quando sentir a descarga de adrenalina.

Agora era altura de eu dizer que sempre quis fazer isto, mas seria mentira. Eu nunca quis fazer isto, o que até a mim causa estranheza e confere pouca legitimidade a esta ideia maluca.

Apesar de nos primeiros mergulhos não descermos a grandes profundidades e haver, por isso, pouco risco de me acontecer alguma coisa devido a subidas descontroladas, deixo em testamento:

– o meu carro para o meu marido;

– a minha máquina de costura para a minha filha mais nova;

– as minhas roupas, jóias, calçado e acessórios para a minha filha mais velha, que assim escusa de me pedir sempre que os quiser usar;

– aos meus amigos, deixo os psicoativos e as garrafas de vinho.

Se eu sobreviver, isto fica sem efeito, tá?

 

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Lembra-te disto

A natureza tem várias maneiras de, ao longo do ano, me ir relembrando de que há ciclos e um rumo natural que certas coisas seguem, mesmo quando parece que tudo o resto se desnorteia.

É o caso da aranhas de sangue que aparecem em maio, minúsculas e metediças, enchendo as paredes e pintalgando os parapeitos; é o caso dos besouros no verão, que parecem emergir da terra à noitinha, voando desorientados numa louca dança de acasalamento; ou das libelinhas, que em setembro rumam a terras mais quentes, cruzando os céus de Sesimbra em voo raso, ou ainda das flores cujo nome desconheço e que despontam sempre por esta altura, lembrando-nos de que há beleza no fim do verão.

Agarro-me a estas certezas quando me sinto fora de pé. A vida tem sempre forma de repor o sítio às coisas.

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É só respirar e dar à barbatana [curso de mergulho #1]

Espero bem que não me ponham a fazer contas quando for mergulhar, porque se a minha vida depender da minha capacidade de raciocínio matemático ou dos meus conhecimentos de física, amigos, já fui.

Comecei a parte teórica do curso de mergulho a pensar que ia ser canja. Técnicas de compensação? Já as faço sempre que ando de avião. Tipos de fatos e barbatanas? Check. Não tocar em nada debaixo do mar? Mas quem é que se atreve?? As orcas que têm sido avistadas ao largo de Sesimbra? Só querem brincar com os lemes, taditas.

Agora,

«Se um recipiente flexível cheio de ar tem um volume de 100 litros à superfície, qual seria o volume a 20 m em água do mar?»

Mas voltámos ao 9.º ano ou quê? Que posso eu que sou de Letras??

 

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