Dia Mundial do Livro

A professora de Português da mais velha enviou um e-mail a desafiar os encarregados de educação a irem à sala falar sobre livros, incentivar à leitura ou, simplesmente, partilhar o gosto pela leitura. Na pré-escola ou no primeiro ciclo, eu seria pessoa para me alistar imediatamente. Não que adore estar em frente de um grupo de miúdos a fazer macacadas ou a tentar ser fixe, pelo contrário, mas as minhas filhas pediam-me recorrentemente que o fizesse e a verdade é que corria sempre bem e era muito bem recebida pelos miúdos, para quem é sempre uma excitação quando vem alguém de fora fazer qualquer coisa – não importa o quê.

Mas no 5.º ano a conversa é outra. Pôr-me à frente de 26 miúdos à beira da puberdade e, ainda por cima, de máscara, sem lhes conseguir interpretar as microexpressões, era coisa para me tirar o sono vários dias seguidos. Felizmente, a Inês arrumou o assunto rapidamente: Mãe, nem penses, morria de vergonha se fosses falar à minha turma.

Eu não lhe disse que quem morreria de vergonha era eu e fiz aquele ar de enfado fingido que as mães fazem quando não querem mostrar como estão aliviadas. De qualquer maneira, não sei do que poderia ir lá falar. Não poderia, certamente, ir dissertar sobre o último livro do Javier Marías que estou a ler, Não Mais Amores, uma coletânea de contos, dos quais, cito, ele não se envergonha (é bastante reconfortante ouvir um autor aclamado dizer que se envergonha de coisas que escreveu) ― e com o qual estou a aprender tudo o que se dizer num conto pequeno, de escrita simples e fluida ―, e sobre a sua obsessão pelo nome Luisa. Já tinha reparado que todas, ou muitas, das suas personagens femininas se chamam Luisa, mas nestes contos isso é realmente flagrante. Mas não há nada misterioso por detrás da escolha do nome, na verdade é enfadonhamente simples:

No hay más razón que esta: me siento cómodo, en las novelas, con pocos nombres de pila. Unos me parecen demasiado vulgares (como no llamarle nada al personaje), otros demasiado literarios o alambicados. Luisa es uno de los que me van bien, por eso lo utilizo en casi todas mis novelas. También Marta, por ejemplo. En mi vida personal no ha habido ninguna Luisa ni ninguna Marta de importancia para mí. No hay más, de verdad.

Acho isto delicioso. Mas duvido que miúdos do 5.º ano o fossem achar minimamente digno de nota.

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Uma semana em imagens VIII

1 – Final de tarde de sexta-feira.

2 – Ida à pizaria; de casaco e mantinha nas pernas, a vontade de sair era tanta que ninguém se queixou do frio.

3 – O gato dos avós.

4 a 6 – Passeio em Almada.

7 – Uma chávena quebrada e colada não serve para beber café, mas serve para germinar agrião.

8 – Um miminho: flores que secam e duram o ano todo.

9 – Um aniversário.

 

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Uma semana em imagens VII

  1. Regressámos às rotinas dos trabalhos de casa depois da escola.
  2. Lembrete para aproveitarmos a vida e as pessoas que nos rodeiam (do livro que acabei esta semana: The Year of Magical Thinking, da Joan Didion).
  3. Foi também semana de regresso às esplanadas à hora de almoço (com máscara e sem companhia, mas sabe bem à mesma).
  4. O dia em que quase adotei um pato-bravo (salvei-o de ficar debaixo da roda de um carro e encontrei-lhe um dono).
  5. O livro que estou a ler agora.
  6. Crepes da Páscoa.

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Anos 90

Quando o cabelo era para mim uma insignificância, temíamos um bando de vândalos que roubavam mochilas, relógios e ténis aos miúdos à saída da escola. Corria o ano de noventa e dois. O líder do bando, um indigente que engravidara precocemente uma rapariga, era conhecido como O Corvo e foi um dia entrevistado pelo jornal da freguesia. Morríamos de medo do Corvo, como se este planasse sobre os pavilhões da escola à espera de nos abocanhar no curto trajecto até ao autocarro em que regressávamos a casa. Eu não sabia, nesse tempo, se era mais seguro correr para o autocarro, também repleto de malfeitores, em que um motorista louco seguia a cem à hora quase capotando nas rotundas, se seguir para casa a pé por um túnel em que um grafito me aconselhava a destruir as ondas e não as praias. O Corvo podia ver-nos sem que o víssemos, pensava eu. De vez em quando, lá se chorava mais uma mochila Monte Campo ou outro par de ténis Redley. Em dias piores, um desgraçado de dez anos era mandado nu para casa. Nos intervalos das aulas, os miúdos corriam às traseiras dos pavilhões ao grito de «está ali o Corvo!». Nunca vi ninguém, contudo.

Ainda não sei o que pensar de Esse Cabelo, da Djaimilia Pereira de Almeida, mas este parágrafo é um relato fiel de um dia normal na C+S nos arredores da Grande Lisboa que frequentei nos anos 90. Caramba, até me arrepiei.

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Páscoa

Nunca liguei muito à Páscoa. Em criança, esta altura era sinónimo de tigelas cheias de amêndoas que eu nunca comia ou folares desengraçados com aquele ovo no centro que nunca ninguém queria; significava também aquela interminável manhã de domingo em que os desenhos animados eram substituídos pela Eucaristia, com aquelas imagens lúgubres de Cristo na cruz, aquele coro enfadonho de vozes a repetir as mesmas ladainhas que me deprimiam, aquelas procissões na aldeia que me metiam medo. A Páscoa, por oposição ao Natal, era triste e pesada; morte ao invés de nascimento; não havia prendas e nem sequer os doces eram bons. A única Páscoa que teve sentido para mim, já crescida, ainda antes de ser mãe e de ter mandado vir o coelhinho da Páscoa, passei-a sozinha, no meu T1 em Berlim, a reflectir seriamente sobre se não teria chegado a altura de dar por terminada a minha vida de emigrante e regressar ao meu país.

Hoje em dia, a Páscoa continua a não ter grande significado para mim. Não sendo religiosa, é-me difícil dar a esta época outra importância que não mais uma possibilidade de reunir a família (mesmo que com restrições, pelo segundo ano consecutivo), e de repetir tradições: a caça aos ovos na manhã do domingo de Páscoa, o folar de erva-doce que nos chega da terra e que eu aprendi a apreciar, o Porto para aconchegar o cabrito que se desfaz na boca.

Este ano, continuámos confinados, mas com Sol e cheiro a Primavera bem entrada. Eu de camisa branca fina a roçar-me ao de leve na pele, ele de óculos escuros e barba de quarentena, elas com os seus fatos domingueiros, mãos sujas das brincadeiras na terra e a pele picada por bichos invisíveis, aproveitámos a tarde, felizes por estarmos juntos, expectantes pelo desconfinamento que se avizinha e as pequenas vitórias de liberdade que estamos ansiosos por saborear (uma esplanada, uma livraria, um almoço com um casal amigo). Vamos ver por quanto tempo, há sempre alguém mais pessimista que vaticina, mas eu já só penso no Verão. Até lá, tenho um novo livro para traduzir, uma nova horta para tratar, uma nova pérgula para montar e três meses inteiros de primavera à minha frente.

Foi uma boa Páscoa.

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