Diário do Sono (1)

Há já algum tempo que penso que devia começar um diário do sono, mas não porque se tenha dado alguma mudança súbita no meu padrão de sono, nem tão-pouco para tentar apurar causas. Se há coisa que percebi ao longo dos últimos vinte anos é que durmo mal e pronto, não importa que não tenha bebido café depois das três da tarde, que tenha evitado o telemóvel ao deitar, que esteja cansada de morte; se o meu cérebro decidir que eu não durmo, a coisa não se dá, ou muito mal. Mas mesmo que os meus padrões de sono não se tenham alterado por aí além nos últimos tempos, este verão notei que até durante as férias eu durmo mal. Estive de férias, no total, durante quase um mês e tive uma a duas valentes insónias por semana, isto sem contar com o tempo de que preciso normalmente para adormecer ou as vezes que acordo durante a noite. Diz o senso comum que deveria ser ao contrário, a pessoa média dorme mal no ramerrame do trabalho-casa e faz grandes sestas quando nada mais a preocupa além do tempo de secagem do fato de banho entre mergulhos.

Então, tenho andando a pensar nisto de escrever um diário do sono, e talvez se aproveite alguma coisa daqui. Por exemplo, as pessoas que dormem pouco são capazes de ser mais interessantes do que as pessoas que dormem muito, porque as primeiras têm mais tempo para pensar nas coisas, para ler e fazer cenas enquanto o sono não vem. Depois também há os vários conflitos que se dão internamente nos mal dormidos, como acontece sempre que oiço alguém dizer que dorme bem e que, se dormir menos de nove horas por dia, anda a bater com a cabeça nas paredes. Sinto o mundo virado do avesso e a balança muito desequilibrada e então começo a pensar nos vários utensílios com que podia asfixiar estes dorminhocos… enquanto eles dormem e eu não.

Esta noite, por exemplo, foi uma noite típica em que tive muita dificuldade em voltar a adormecer depois de um desvario noturno da minha mais nova. Como resultado, dormi menos de seis (cinco?) horas e, ultrapassado o mau humor das primeiras horas da manhã, acabei por conseguir ignorar o ardor nos olhos e fazer-me ao dia. Será este o meu superpoder?

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Hierarquia das preocupações

Estava uma confusão de pessoas em pé no restaurante a que ontem fui almoçar. Sentei-me perto da porta, porque era a única mesa para gente sozinha, mas cedo me arrependi. Fui rodeada de pessoas que esperavam mesa ou a encomenda para levar e um ou outro que, não sabendo estar quieto, esperava numa roda viva, andando para trás e para a frente e perturbando-me a leitura. Ainda por cima, o dispensador de álcool gel estava mesmo atrás de minha mesa. Sou muito pouco social quando decido ir comer sozinha. Não só aí; sou, no geral, uma pessoa que gosta de e sabe estar sozinha. Não sei como é que, daqui a dez dias, me vou enfiar numa casa com mais cinco adultos e o dobro das crianças para umas férias no país do champanhe. Há várias coisas que me preocupam, entre elas, a ausência de sossego ou de tempo para mim, para ler tranquilamente ou ir dar um passeio a ouvir os meus podcasts. Também me preocupa a quantidade de croissants que vou ter à disposição todos os dias e as tentativas, nem sempre falhadas, do anfitrião em me manter permanentemente bêbeda. Esperam-me tempos conturbados. Isto, se conseguirmos sair do país e se ninguém se infectar até lá… Portanto, acho que a bebida e os hidratos de carbono são a mais pequena das minhas preocupações.

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Enquanto espero

Fui vacinada. Já passaram 48 horas e já não me dói o braço, mas acometeu-me uma grande preguiça. Dormi como uma pedra, o que já de si é esquisito – eu ter uma noite sem percalços -, mas passei a manhã mole e cansada, como se não tivesse pregado olho. Agora, estou à espera que o estado evolua, que comece a ter dores no corpo, sintomas de gripe ou algo mais, porque eu sou aquela pessoa que, num jantar de grupo, toda a gente come do prato de comida estragada, mas só a ela é que lhe faz mal.

Não obstante o estado dormente, ontem à noite ainda deu para terminar O Fulgor Instável das Magnólias, da Ivone Mendes da Silva, e para, mesmo antes de adormecer, sentir aquele sentimento de vazio que me preenche quando termino um livro mesmo muito bom ou descubro um grande escritor. Já mandei vir os Contos Esquivos, mas vou adiar o prazer.

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Prepotência

Pinto o cabelo ao som de Lou Reed. Foi o que a Alexa me deu quando lhe pedi indie pop (há alguns conceitos que a Alexa confunde, mas desta vez não a corrigi). Depois, tocou The Smiths, e eu dancei muito, porque não me importa se o homem é ou não é racista (há grandes discussões nesta casa sobre isso), nunca fico indiferente às suas músicas.

No outro dia, chamaram-me prepotente. Que sou prepotente e preconceituosa com a música. Eu não tenho problemas nenhuns em admitir que sou muito preconceituosa com a música e os livros, é um facto que acho que há coisas com qualidade e coisas sem qualidade e que eu me encontro, felizmente, no lado certo da barricada. Mas ouvir os outros dizê-lo é esquisito. Fez-me pensar e concluir que… não me incomoda nada ser prepotente e preconceituosa com a cultura. Incomoda-me dormir mal, por exemplo. Incomoda-me que não possa comer o que quero sem que a barriga inche como um balão. Incomoda-me que chova no meu dia de anos. Agora não me incomoda gostar de ouvir boa música e ler bons livros. Ora essa. E agora a Alexa pôs The Passenger do Iggy Pop e eu tenho de ir para a casa de banho dançar.

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Flores

Isto de ter uma horta à porta de casa tem o que se lhe diga. É certo que tenho as coisas espalhadas por vários canteiros e que tenho um empedrado para atravessar entre tomateiros e beterrabas, as curgetes dentro do jardim de buxo e as hortênsias à frente da casa, e ainda tenho de subir as escadas para a varanda em que já mal se pode dar um passo; é certo que não posso propriamente entrar dentro de uma parcela de terra sem alçar a perna por cima do muro de buxo ou picar-me nos vários cactos que se esforçam por sobreviver; é certo que isto não é bem uma horta, mas um jardim em recuperação; mas ter água sempre à disposição e ter a disponibilidade para ir caçar lesmas à noite e dar a regadela misericordiosa antes de sair para o trabalho tem o seu quê de reconfortante. Está tudo à mão; se alguma coisa não der, não será certamente por falta de dedicação. Mas mentiria se dissesse que não sinto falta de uma parcela de terra argilosa por onde me enfiar com as galochas e me perder no meio dos tomateiros altos. Tenho saudades de me agachar e enfiar a mão na terra, de andar sempre com os joelhos sujos e a pele queimada à camionista. Quando, em calhando, vou a casa de alguém que tem um lote de terra, por muito pequeno que seja, ao abandono, por falta de tempo ou interesse, quase que se me revoltam as entranhas. Ai, nem sabem a sorte que têm… Quando vejo fotos dos quintais dos outros, grandes quadrados de relva desbravada ou terrenos baldios a perder de vista, penso em tudo o que ali faria e, ai, dá deus nozes a quem não tem dentes… Mas cada um tem o que tem e eu preciso de apreciar mais o que tenho.

Tenho, assim, passado os finais de dia a semear e a plantar, a fazer crescer e recuperar o que se julgava morto, a juntar hortícolas com flores com a esperança de casamentos felizes e a aprender a nomenclatura botânica com o meu companheiro de horta, o tio João, que vive aqui ao lado e me ensinou a distinguir entre dálias, begónias e peónias, a perceber as idiossincrasias das petúnias e dos cravos túnicos e a aceitar que o jasmineiro se acha o rei do labirinto de buxo, pelo que se exige cautela para não o ofender com vizinhos sobranceiros. Ele vai-me elogiando a “volta que ando a dar ao jardim da frente”, a ousadia em juntar coisas de comer com coisas de enfeitar e a curiosidade em perceber que aquilo que ali nasce afinal são beldroegas, que dão uma bela sopa, porque, se fosse ele, já as tinha arrancado com medo que fossem daninhas; eu, para além de gostar da sua companhia, estou a gostar de ganhar com ele o gosto pelas flores e só por ele me contenho em não cortar uma ou outra para adornar a minha mesa de cabeceira. É que ele ia ficar triste e eu, se isso sucedesse, nem iria dormir bem.

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