Em Plum Village, o dia começa às 5 da manhã. Ainda de noite e com muito frio, eu e a alemã seguimos juntas, de lanterna na mão, para a primeira actividade da manhã. Ainda estamos indecisas quanto à língua que queremos falar uma com a outra, mas, de qualquer forma, o noble silence só termina no fim da primeira actividade matutina, por isso, a meio do percurso, acabamos por escolher o silêncio. Assim que passamos o portão do New Hamlet, observo, incrédula, a inexistência de pressa àquela hora da manhã. As Irmãs andam devagar, a passo de museu. Imito-as e reparo que toda a gente faz o mesmo.
Às seis horas, começa a meditação guiada, seguida de cânticos e saudações à terra (tradução livre do que me pareceu ser o touching the earth, uma espécie de vénia em que nos ajoelhamos e nos vergamos até tocarmos com os braços e a testa na terra). Supero bem os primeiros 45 minutos de meditação, apesar de os meus joelhos se começarem a queixar e de experimentar um formigueiro atroz nos pés. Nesta altura, eu ainda não sabia que as dores nos joelhos e o formigueiro viriam a piorar nos dias seguintes, de tal maneira que, no final da semana, viria a optar por me sentar numa cadeira durante a meditação…
Depois os cânticos: a tortura, o suplício, a tormenta. Talvez a culpa seja da minha aversão a qualquer forma de expressão religiosa (ainda assim, estava ali, num mosteiro budista), talvez seja do tom monocórdico com que os cânticos eram entoados (uma ladainha que, às seis da manhã, me parecia interminável). O facto é que, durante a semana que lá passei, nunca consegui sentir qualquer prazer a ouvir os cânticos…
Depois de uma hora de meditação, touching the earth e cânticos, ainda há, duas vezes por semana, meia hora de exercício. O exercício é composto por movimentos bastante simples dos braços, pernas e ancas que as Irmãs mandam executar com um sorriso nos lábios. Segunda confissão do dia e ainda só são 7h30: a ginástica das monjas é tão inocente quanto elas. Sorrio interiormente, para logo me recriminar: estás aqui para não julgar.
Finalmente o pequeno-almoço. Como não tinha chegado a tempo da sessão de orientação do primeiro dia, pouco sabia sobre as regras às refeições. Tinha visto no documentário que não se falava durante a refeição. Calculei que houvesse mais regras, por isso limitei-me a observar. Mais tarde nessa manhã, haveria outra sessão de orientação, onde fiquei a par das regras e recomendações, a saber:
- As refeições são momentos muito importantes de partilha, que devemos aproveitar para praticar a presença plena e a gratidão. Por isso, não se fala nem há qualquer tipo de distracção. Enquanto comemos, estamos a fazer apenas uma coisa: comer.
- Apesar de o almoço ser a refeição mais rígida em termos de regras, devemos esperar sempre que todos os (quatro) lugares da nossa mesa sejam ocupados antes de começarmos a comer. A comida vai ficar fria, mas não podes tocar no prato!
- As refeições mais descontraídas são no Lazy Day e na Lazy Evening, em que podemos conversar baixinho e não temos de esperar pelos outros para começarmos a comer.
- Devemos mastigar cada garfada umas 30 vezes, aproveitando para apreciar os sabores, sentir a textura, agradecermos a cada pessoa que permitiu que aquela comida nos chegasse à mesa…
- No final da refeição, cada um lava e arruma o seu prato e os seus talheres. A lavagem de pratos viria a constituir um dos dois momentos mais stressantes para mim ao longo destes 7 dias. Mas sobre isso falarei mais tarde.
Entre o pequeno-almoço e o almoço havia muitas actividades. Em função dos dias, podia haver uma palestra, uma sessão de perguntas e respostas, a visualização de um vídeo do Thay ou uma sessão de partilha, na qual cada um podia partilhar o que quisesse, do foro pessoal ou não, sobre um tema que era lançado para a mesa. A Irmã servia apenas como moderadora e raramente dava a sua opinião ou conselhos. As Irmãs são, por norma, pessoas muito reservadas, tímidas e caladas. Ainda assim, era possível pedir uma consulta com uma Irmã sénior, mas eu nem sequer pus essa hipótese. Primeiro, porque não tinha exactamente um problema na vida e, por isso, não saberia bem o que dizer. Segundo, porque não conseguia imaginar que conselhos é que uma pessoa que vive fechada num mosteiro há 15, 20 ou 30 anos me poderia dar para os meus problemas mundanos… Mas, continuando, antes de almoço havia, todos os dias, a walking meditation, ou seja, um passeio de 45 minutos a um ritmo bastante lento, mais lento do que o ritmo de museu, tão lento que temos mesmo de obrigar as pernas a não impulsionarem o corpo para a frente. Isto em silêncio e contemplação. Ora bem, eu já tinha visto isto no documentário de que vos falei e achei que me ia dar vontade de rir. E deu. Mas foi só da primeira vez. Porque, com o hábito, passei – eu e toda a gente – a gostar daquelas caminhadas meditativas, em que os passos são dados ao ritmo de 4 ou 5 ciclos respiratórios, em que sentimos cada galho debaixo dos nossos pés e ouvimos os passarinhos a cantar e paramos para apreciar os rebentos das ameixoeiras. Idílico ou ridículo? O facto é que, acreditem, estas caminhadas tinham algo de apaziguador.
Quando regressávamos, era quase sempre hora de almoço, mas tínhamos de esperar que se cumprisse o ritual de tocar o sino. Aliás, parece-me que o budismo é feito de rituais, o que tem o seu lado reconfortante de saber o que se espera. Mas, antes disso, havia sempre tempo para ir buscar a nossa chávena e fazer um chá. Não era só nesta altura que tínhamos tempo para beber chá. O tempo era-nos disponibilizado como algo essencial, garantido. Os próprios horários estavam feitos de forma a evitar pressas: havia sempre tempo para ir à casa-de-banho, beber um chá e ficar a conversar ou a fazer nada. Fiz nada muitas vezes, todos os dias. Às vezes, o tempo para fazer nada era tão longo, como a hora e meia que separava o almoço do mindful working, que até dava para ir dar um passeio a pé até à povoação mais próxima (2 km) para beber um café… Ele há hábitos tramados.
A par da lavagem de pratos, o mindful working era um dos momentos mais stressantes para mim. Cheguei mesmo a abandonar o trabalho a meio por sentir que não estava a surtir o efeito “mindful” desejado. Basicamente, as Irmãs nunca estavam de acordo. Isto tem alguma piada, se pensarmos na ironia da coisa. Afinal, as Irmãs vivem em comunidade, conhecem os preceitos e os costumes e deveriam estar mais ou menos alinhadas. Só que não. Cada uma dava sua ordem. Se uma me dizia para secar os pratos com a toalha, cinco minutos depois vinha outra dizer-me que não era para secar os pratos com a toalha. Se uma me mandava tirar as ervas daninhas, cinco minutos depois outra me vinha dizer que não era para tirar as ervas daninhas. Uma vez, recebi três ordens contraditórias de três Irmãs diferentes no espaço de 20 minutos. Foi nesse dia que pousei delicadamente o pano que tinha na mão e saí sorrateiramente, marimbando-me para aquela desorganização. Fui ler um livro ou, provavelmente, fazer nada.
O jantar era às 17:30 e depois disso não se comia mais. Havia quem comesse à noite, no quarto, mas eu consegui manter sempre um jejum de 14 horas. Como me deitava cedo, não me custou absolutamente nada. Às 20h havia a última actividade do dia que, como não podia deixar de ser, era meditação. Por vezes, guiada, outras vezes não guiada, o que nos dava a liberdade de sair quando quiséssemos.
À noite, nos quartos, conversávamos sobre o dia, o que estávamos a achar e quais as nossas expectativas. As luzes eram desligadas às 22:30, o que nos dava muito tempo para conversar (baixinho, já estávamos no noble silence!) e depois ficar a ler, até as luzes serem apagadas por volta das 22h. No dia seguinte, o despertador iria tocar novamente às 5 da manhã…