Por que raio decidi eu escrever aqui todos os dias do mês de Outubro, em jeito de diário, sobre coisas aparentemente tão desinteressantes e insignificantes, como a pêra-melão ou os figos que ponho nas papas de aveia? Percebi hoje que precisava de me concentrar em mim, todos os dias um bocadinho, para, a meio do mês, conseguir falar sobre o elefante na sala.
Está a fazer um ano que perdi o meu terceiro bebé. E sabia que tinha de me preparar para isto.
A minha versão à célebre frase de autoria desconhecida “quanto mais conheço as pessoas, mais gosto dos animais” é: quanto mais conheço os outros, mais gosto de ser quem sou.
Faz hoje exactamente um mês que fiz 40 anos. Achei que a data merecia um post introspectivo sobre os novos 30; sobre o que conquistei até hoje ou o que ainda quero fazer; sobre as marcas da idade. Mas como não me chegou a inspiração, fui adiando até me esquecer. (Talvez seja o primeiro sinal de que chegámos aos 40, começarmo-nos a esquecer.) Mas entretanto, esta semana, ao ler O Caminho Imperfeito, do José Luís Peixoto, diz ele a certa altura: Tenho quarenta e dois anos. Quando olho para esta idade, parece-me imensa. E eu pensei, é isto, afinal era tão simples.
Tenho quarenta anos. Quando olho para esta idade, parece-me imensa. Cabe tanta coisa aqui, e ainda há espaço para tanto mais. Mentiria se dissesse que não me custa a crer que tenho quarenta. Custa-me a crer porque não o sinto. Quando era miúda achava que aos 40 já estaria acabada, finita, destinada a viver os dias sempre da mesma maneira, porque o que tinha conseguido até então seria definitivo; depois dos 40, achava eu, já não nos restava mais nada senão ficar a ver o mundo passar. Estava enganada, claro. Aos 40 sinto-me mais leve do que nunca; o peso do mundo foi deixando de estar sobre os meus ombros. É a ternura dos 40.
Quando olho para o espelho, vejo cada vez mais a minha mãe. Na boca, nos cantos dos olhos, nas expressões. Cresci a ouvir dizer que era a cara do meu pai, mas desde há uns anos que comecei a ver a minha mãe em mim. E isso tranquiliza-me. Um dia, as minhas filhas também se vão olhar ao espelho e ver-me nelas. Acho que, muito mais do que deixar o meu nome num livro ou ser conhecida por algum feito, é essa a marca que lhes vou deixar, a elas, ao mundo, no mundo.
No outro dia, mesmo que já tenha sido há umas semanas, continua a ser no outro dia, enquanto andava à procura de uma prenda para a Alice (que ainda está na fase das bonecas a quem já deixou de cortar o cabelo), passei por umas barbies daquelas que há agora em tamanho XXL. Achei-as estranhíssimas e passei à frente. Mas voltei atrás. Teria eu antipatizado imediatamente com uma boneca por representar uma mulher gorda? Não podia ser, tinha de perceber melhor. Olhei bem para elas todas, eram uns 3 ou 4 modelos, e percebi o que todas tinham em comum para além das formas avantajadas: estavam todas mal vestidas, com roupas largueironas, feias (aquilo a que chamamos de trapos) que lhes ficavam mal e não as tornavam nada atractivas. Ao lado, estavam as barbies a que sempre nos habituámos, as de cintura fina e cabelo sedoso, roupas elegantes e acessórios glamorosos. As magras, super glamorosas. As gordas, umas trapalhonas (de trapo). Devia ter tirado uma foto, mas estava com pressa e só voltei a pensar nisto mais tarde.
Isto incomoda-me bastante. Há uma tendência generalizada que todos aceitamos como normal que é a de nos fazerem crer que temos de esconder aquilo que foge aos parâmetros normais, sejam os cabelos brancos, as rugas, seja um corpo com medidas diferentes às que alguém ditou como aceitável. E nós aceitamos que nos digam o que devemos aceitar.
Eu não sou gorda. Já fui. Emagreci porque adoptei um estilo de vida saudável na sequência de um diagnóstico de saúde alarmante para a idade que tinha na altura. Faço desporto porque preciso, mas entretanto aprendi a gostar e a integrá-lo na minha rotina de tal forma que me sinto mal se a quebro. Portanto, não sinto que tenha de esconder gorduras. Também não sinto que tenha de esconder os brancos. Já deixei de pintar o cabelo e voltei a pintá-lo, porque não gostei de me ver assim. Foi um teste, um ano e meio sem pintar, mas houve um dia em que olhei para o espelho e vi uma mulher muito mais velha que não corresponde à forma como me sinto. Por agora continuo a gostar de mim morena.
Mas durante muito tempo senti que tinha de esconder a minha perna dos outros. Ainda sinto, vá. Mas estou muito melhor. Ainda assim, com toda a ajuda e força de vontade, não creio que algum dia me vá ser completamente natural escolher um vestido pelo joelho só porque me apetece, sem contar com os imponderáveis (dos quais podia fazer uma lista). Por sorte (ou resultado de um grande trabalho interior), tenho uma parte de mim muito “fuck society” que me faz revoltar-me perante as imposições da sociedade. Mas quem é que decidiu o que é que eu posso ou não usar? Mas quem é que me diz como é que eu me devo sentir? Não gostam? Pois não olhem. Eu tenho tanto direito a estar aqui – e a vestir-me como quiser – como vocês todos. Como resultado destas reflexões, nem sempre por esta ordem, costumo mandar a “sociedade” para aquela parte, ponho uma saia, levanto a cabeça, endireito as costas e atravesso na passadeira (atravessar na passadeira de saia sem sentir que ia desfalecer foi uma das grandes conquistas deste meu processo, é engraçado, porque a maioria das pessoas atravessa na passadeira sem pensar, os que uns dão como garantido, a outros dá uma grande trabalheira).
Gosto desta fase. Sinto-me livre.
Mas a fase “fuck society” não dura o ano todo. Talvez lá chegue um dia. Por agora, ainda tenho a fase oposta, em que tenho de me contrariar constantemente. Na fase em que me encontro desde antes do dia em que vi as barbies gordas, estou a passar por um bloqueio com determinadas aulas no ginásio que me transportam aos tempos da C+S. Volto a ser a miúda que nunca é escolhida para as equipas, que fica sempre para o fim, ela e os gordos. Eu e as barbies gordas. Deixei de ir a essas aulas, mas causa-me uma grande angústia (o porquê de ter deixado de ir, claro). E depois vejo bonecas à venda que se supõem ter como objetivo quebrar barreiras e estereótipos vestidas da forma como a sociedade acha que elas se devem apresentar de acordo com o seu tipo de corpo. E isso enfurece-me.
Com isto tudo, fico a pensar se deveria ter comprado o raio da boneca…
Esta sou eu.
Nasci com um pé boto, que é o mesmo que dizer com o pé metido para dentro. A primeira cirurgia aos 11 meses foi um autêntico flop médico, seguida de imobilização com gesso que me viria a atrofiar irreversivelmente o crescimento da perna. Outro erro. Em consequência disto, seguiu-se uma série de cirurgias correctivas até completar 16 anos.
Hoje em dia, tenho um pé um número mais pequeno do que o outro, cheio de cicatrizes e dedos que encaracolam, o que tem o seu quê de poético não fosse o desconforto que me causa. Tenho 12 mm de diferença na altura de uma e outra perna, o que me faz coxear sempre um pouco, mesmo que não tenha dores. Graças a muito desporto, consegui desenvolver o músculo da perna, mas a diferença entre as duas pernas é – e será – sempre notória.
Escondi esta diferença durante 23 anos. Quando tinha 12 anos, com a autoconsciência exagerada do corpo que a puberdade traz, comecei a sentir-me diferente. Daí até ser uma complexada foi um passo. Durante 23 anos, não usei saias acima do tornozelo, calções então eram proibitivos. Não ia à praia, ou apenas com pessoas seleccionadas. Meti na cabeça, ou meteram-me, que era insuficiente, inapta para a maioria de desportos ou actividades físicas, que não tinha o direito de sujeitar os outros à visão de um pé e uma perna deformados, com tudo o que isso implica em períodos tão importantes da vida como a adolescência, a entrada na faculdade, o primeiro namorado, os anos de jovem adulta. Foram 23 anos presa dentro de mim.
Um dia, já adulta e mãe, decidi fazer psicoterapia. A psicóloga devia ser parva, porque me dizia que eu ainda iria usar saias, e eu ria-me, a tentar disfarçar o meu escárnio. Nunca julguei ser possível. Era um daqueles pesadelos recorrentes de que acordava sempre angustiada. Mas no Verão de 2015, quando já vivia ao pé da praia e as calças se tornaram um estorvo impraticável, senti que estava na altura de dizer basta. Bastava de ter calor, bastava de não poder usar a roupa que quisesse, bastava de não me sentir no direito de gostar de mim. E assim sucedeu que um dia pus um vestido, saí à rua e descobri como é bom sentir a brisa de Verão nas pernas. Foi uma sensação única e memorável, como se tivesse descoberto um novo sentido.
Passaram-se 3 anos desde esse momento. Este ano, voltei a sentir necessidade de recorrer à psicoterapia, porque percebi que cuidar da nossa saúde mental é tão importante como cuidar da nossa saúde física. A minha segunda psicóloga também deve ser parva porque acredita que eu vou ser capaz de começar a gostar de me ver nas fotografias, mas desta vez já acredito nela. E comecei a tirar-me muitas fotografias de corpo inteiro, como esta que aqui ponho, e a olhar para elas como um exercício.
23 anos anos não se desfazem do pé para a mão. Mas quando faço a mala para umas mini-férias e percebo que, sem dar por ela, não incluí um único par de calças, sinto que estou no caminho certo. E agora não quero parar.
Esta sou eu.
Eu sou assim.
É assim que é.
Habituem-se.