Vai uma pessoa, começa uma horta na varanda, visita as minhocas três vezes ao dia, alimenta-as adequadamente e procura perceber se estão de boa saúde (para isso tem de lhes tocar, claro está, o que já não faz impressão), compra arruda para afugentar os gatos (e as bruxas também, fiquei eu a saber), planta 6 alfaces, com extrema preocupação para com as lesmas, e, no fim, aquilo que realmente nos estraga as sementeiras e os morangos não são as lesmas, nem os gatos, nem os caracóis, nem os insectos, mas sim o raio de um corvo. É o corvo, avisou a Ana, a vizinha, que vem de manhã debicar o vaso verde, aquele das sementes de acelga, e os morangueiros também, que estavam tão bonitos. Por isso estranhava eu que as acelgas não rebentassem – a minha primeira experiência tinha resultado muito bem e a Ângela do workshop disse que as acelgas davam muito bem – e que os caules dos morangos tivessem aparecido partidos. A Lena, a senhora da limpeza, também já me tinha dito que o gato Dexter andara a deitar os vasos para o chão, coisa que eu estranhei muitíssimo pois o bicho não se costuma prestar a essas coisas. Vai na volta foi mesmo o corvo, que mais parece um peru, diz a Ana, a vizinha, é pesado e grande como o raio e me comeu as sementes de acelgas todas. Tão irritada fiquei que fui buscar a estufa para as sementeiras, aquela estufa que nunca resultou, e comecei a construir, por cima do morangueiro que se safou, um espanta-corvos que mais parece uma carruagem de circo. É que a ave dos maus presságios, o tal corvo, não é um corvo qualquer. Não. É o corvo Rafael que vai comer à mão de um homem que costuma parar na esquina do café e falar, orgulhoso, do seu novo bicho de estimação, que lhe vem comer bolachas à mão, ora querem ver?, e tira do saco umas bolachas que atira para a estrada, enquanto chama Rafael, ó Rafael. Naquele dia o bicho não foi, mas estes meus olhos já viram, noutra ocasião, tamanho acontecimento insólito, de ir o ovíparo efectivamente comer à mão do dono, prova de que não é nenhuma história inventada só para me desculpar de más jardinagens. Talvez não tivesse fome, naquele dia, talvez tivesse o bucho cheio de sementes de varandas alheias. Fiquei tão irritada, repito, que devo ter mencionado a palavra espantalho várias vezes para que hoje, de manhã, a Alice ouvisse o corvo, empoleirado a dois telhados do meu, grasnando com a sua voz de cana rachada, o traste, e me perguntasse Ó mamã, quando é que fazemos o espantalho?
E pois que agora terá mesmo de ser. Raisparta o bicho.