Homestressing

Cá em casa, o pai trata do homeschooling e a mãe vai trabalhar. Foi o que decidimos assim que entrámos em novo confinamento e as escolas fecharam. Porque 1) não temos computadores que cheguem para todos, 2) eu continuo com o mesmo volume de trabalho e 3) ele tem um espírito de missão que leva inabalavelmente até ao fim sem nunca se queixar, já eu… Então, eu saio todas as manhãs para o escritório, venho almoçar a casa e volto para o escritório até por volta das 16:30, ou até ser necessário. Não me queixo. Espaireço e mantenho quase a mesma rotina do antigamente, saio de casa para trabalhar, mesmo que não veja ninguém pelo caminho, não conviva, não faça desvios desnecessários nem passe mais do que cinco minutos seguidos dentro do carro.

Hoje, foi preciso trocarmos os papéis e organizei a minha agenda para ficar com elas em casa. Tinha tudo pensado: ajudar uma a fazer a apresentação de português em Powerpoint, ajudar a outra a consolidar o jota e o guê, despachar as tarefas obrigatórias, talvez ainda dê para beber café descansada a ler o jornal digital. Qual quê. Não só praticamente todos os meus clientes se lembraram de mim e me encheram a caixa de e-mail, como a minha editora ainda me telefonou para falar sobre o presente e o futuro, com histórias sobre este e aquele e os meandros do mundo editorial, que eu adorei e teria adorado ainda mais, não me tivesse apercebido das miúdas a rondar, uma esfomeada, a outra desnorteada, torta na cadeira a olhar para o teto, à espera de uma indicação minha enquanto esmigalhava a borracha do lápis, e eu a fazer-lhe sinais para que terminasse a ficha, enquanto ia murmurando uns pois e sins ao telefone, não me diga, isto realmente, tentando concentrar-me no que me era dito ao mesmo tempo que ia fazendo sinais com a cabeça e arregalando os olhos numa tentativa vã de transmitir o que quer que fosse. Quarenta minutos depois, entrei de rompante no quarto onde estava a mais velha, mas levei com um olhar fulminante, a aula já tinha começado, bolas, e o trabalho, fica para depois, e agora tu, o que é que tens para fazer, uma pintura com cotonetes com cores feitas em casa, é o quê, mas estes professores querem vingar-se de nós? Sem hesitar, fui buscar café, curcuma e matcha, misturei com umas gotas de água e despachei uma série de cores, amarelo para o sol, verde para a árvore, castanho para o tronco, mas faltava o azul do céu, mas hoje chove, onde raio está o corante alimentar, ali, um pouco de água, mexe, já está, faz um desenho, e ela fez, com toda a calma do mundo, enquanto eu fui despachar uma tradução chata, antes de ir buscar o almoço a pé, porque o outro carro tem o pneu em baixo, na verdade, nem me lembrei, é tão chato estacionar ali, mais vale ir a pé, fui e vim, ele já tinha chegado, almoçámos, bebi café, hoje arrumas tu, fui para o escritório, trabalhei ininterruptamente até quase às seis, cheguei a casa, abri uma garrafa de vinho, tive de ouvir a boca, parece que esta semana todos os dias são sexta, mas só por causa do vinho, caneco, deixem-me em paz, tudo se faz, ou não é, e olha que o desenho nem ficou mau de todo, já o vinho podia ser melhor.

Continue Reading

Copo meio cheio

Eu sei que é pelo melhor e blá, blá, blá, mas não consegui evitar uma pré-crise de ansiedade quando percebi, hoje de manhã, que o fecho das escolas era mesmo iminente e que ia haver a segunda temporada do Estudo em Casa numa casa perto de si.

Como tento ser uma pessoa positiva, passei a manhã a fazer uma lista mental das coisas boas em não haver escola presencial e estarmos todos confinados em casa em pleno inverno, e pelo facto de o PM ter anunciado que, durante os próximos 15 dias, os meninos vão ficar de férias, sem a macacada das aulas zoom, a lista afigurou-se-me um bocadinho mais simpática.

Coisas boas do confinamento sem estudo em casa, por ordem cronológica:

  • Não é preciso levantar-me às 6:50.
  • Não é preciso ir ao pão às 7:30.
  • Não é preciso acordar a Alice e contornar as dezenas de “Não quero” com a destreza de um trapezista do Cirque du Soleil.
  • Não é preciso passar na escola para dar o pão à Inês às 8:50 porque, entretanto, a padaria fechou e o minimercado só abre às 8:00, hora a que já teria de estar na escola.
  • Poder passar o dia de roupa confortável porque agora é que não tenho mesmo de sair de casa.
  • Não há Estudo em Casa.

E, bom, parece que a minha lista das coisas boas acaba às 9:30. Vou ter de me esforçar mais um bocadinho.

Continue Reading

Dilemas

A Inês conta, sem qualquer ponta de queixume, mais como uma constatação dos factos, que os colegas passam os intervalos no seu rectângulo agarrados ao telemóvel, só ela é que não, porque não tem um telemóvel com cartão SIM, o que é basicamente igual a não ter. Os colegas têm cartão e dados móveis e redes sociais, até conta no Instagram com tão tenra idade, e depois passam os dez minutos de intervalo com a cabeça enfiada no aparelho a trocar fotos entre si, a jogar ou a fazer sabe-se lá o que é crianças de dez anos fazem na internet. Imagino 23 miúdos, cada um no seu canto, sozinhos, a trocar a convivência com os colegas pela companhia do telefone e penso que humanos são estes que estamos a ajudar a criar? Os pais não terão certamente visto o documentário The Social Dilemma e a escola é capaz de ter mais que fazer do que proibir o uso do telefone ou desligar a wi-fi, mas a mim preocupa-me a forma desenfreada como a internet entrou nas nossas vidas. Estamos a assistir à generalização de um comportamento viciante e a dar o nosso consentimento para isso. Em comparação, o facto de terem de deixado de medir a temperatura à entrada não me parece, de todo, grave.

Continue Reading

Medir a felicidade

Resumo da primeira semana de aulas: é capaz de não ter sido mau de todo.

Apesar de todas as diferenças e restrições à liberdade de movimentos que foram impostas às nossas crianças neste ano lectivo. Apesar das máscaras, dos rectângulos demarcados no chão a que têm de se limitar nos intervalos. Apesar da não partilha de objectos pessoais.

Apesar de tudo, a Inês continua a fazer o que sempre fez na escola, a ir almoçar ao refeitório, a ir para o ATL e, se faz bom tempo, a brincar “aos sobreviventes”. Adora a professora de Português, já deu uma alcunha ao de EV e diz que aquecer em EF com cinco voltas ao campo é maior tortura que ter de usar máscara o resto do tempo.

Eu ainda ando às voltas com os acrónimos das disciplinas e não consigo perceber bem a diferença entre TIC e ET, não é tudo tecnologia? Espanta-me o número de livros que ela tem de levar para a escola todos os dias, se no meu tempo não era cá preciso livro para Educação Visual… Imagine-se um livro em Mecanotecnia, se aquilo já era chato como o diabo.

A mais nova também adora ir para a escola; já aprendeu a letra i e brinca com a prima nos intervalos. Ficou triste porque só dois amigos votaram nela para ser delegada e, por isso, agora já não é a primeira da fila, porque é a delegada que vai à frente a liderar o pelotão. A comida do refeitório é sempre boa e a sopa, a segunda melhor do mundo.

Como já não fazem fila à entrada para medir a temperatura, perguntei-lhe se ainda medem (pois, na escola da irmã deixaram de medir, terá o termómetro avariado?!) e ela respondeu com um meneio de cabeça baralhado, que me deixou na dúvida: sim ou não, medem ou não medem? Explicou-me: «Agora, as auxiliares medem a nossa felicidade».

E eu ri-me.

Continue Reading