Flores

Isto de ter uma horta à porta de casa tem o que se lhe diga. É certo que tenho as coisas espalhadas por vários canteiros e que tenho um empedrado para atravessar entre tomateiros e beterrabas, as curgetes dentro do jardim de buxo e as hortênsias à frente da casa, e ainda tenho de subir as escadas para a varanda em que já mal se pode dar um passo; é certo que não posso propriamente entrar dentro de uma parcela de terra sem alçar a perna por cima do muro de buxo ou picar-me nos vários cactos que se esforçam por sobreviver; é certo que isto não é bem uma horta, mas um jardim em recuperação; mas ter água sempre à disposição e ter a disponibilidade para ir caçar lesmas à noite e dar a regadela misericordiosa antes de sair para o trabalho tem o seu quê de reconfortante. Está tudo à mão; se alguma coisa não der, não será certamente por falta de dedicação. Mas mentiria se dissesse que não sinto falta de uma parcela de terra argilosa por onde me enfiar com as galochas e me perder no meio dos tomateiros altos. Tenho saudades de me agachar e enfiar a mão na terra, de andar sempre com os joelhos sujos e a pele queimada à camionista. Quando, em calhando, vou a casa de alguém que tem um lote de terra, por muito pequeno que seja, ao abandono, por falta de tempo ou interesse, quase que se me revoltam as entranhas. Ai, nem sabem a sorte que têm… Quando vejo fotos dos quintais dos outros, grandes quadrados de relva desbravada ou terrenos baldios a perder de vista, penso em tudo o que ali faria e, ai, dá deus nozes a quem não tem dentes… Mas cada um tem o que tem e eu preciso de apreciar mais o que tenho.

Tenho, assim, passado os finais de dia a semear e a plantar, a fazer crescer e recuperar o que se julgava morto, a juntar hortícolas com flores com a esperança de casamentos felizes e a aprender a nomenclatura botânica com o meu companheiro de horta, o tio João, que vive aqui ao lado e me ensinou a distinguir entre dálias, begónias e peónias, a perceber as idiossincrasias das petúnias e dos cravos túnicos e a aceitar que o jasmineiro se acha o rei do labirinto de buxo, pelo que se exige cautela para não o ofender com vizinhos sobranceiros. Ele vai-me elogiando a “volta que ando a dar ao jardim da frente”, a ousadia em juntar coisas de comer com coisas de enfeitar e a curiosidade em perceber que aquilo que ali nasce afinal são beldroegas, que dão uma bela sopa, porque, se fosse ele, já as tinha arrancado com medo que fossem daninhas; eu, para além de gostar da sua companhia, estou a gostar de ganhar com ele o gosto pelas flores e só por ele me contenho em não cortar uma ou outra para adornar a minha mesa de cabeceira. É que ele ia ficar triste e eu, se isso sucedesse, nem iria dormir bem.

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Tatuagem

A maior parte das pessoas acha graça à minha tatuagem; diz-me que está tão bem desenhada, que condiz tanto comigo, que grande coragem para tatuar assim o antebraço. Mas noutras noto um arrepio, uma dificuldade visível em concentrar o olhar longe do pedaço de pele bracejante. Não vou, como é óbvio, esconder o braço de olhares reprovadores. Se o fiz, foi porque quis, porque gosto, porque assim o decidi do alto dos meus 41 anos que me legitimam as decisões. Se soubessem o que me levou a fazê-lo talvez compreendessem melhor, ou então lançavam-me um daqueles olhares de pena que não suporto. Eu sei que a mim me ajudou a fechar o ciclo. Poderá naturalmente não estar relacionado, mas desde que fiz a tatuagem que pensei, pela primeira vez, que foi pelo melhor que aconteceu o que aconteceu. Não sei se, neste momento, estaria talhada para acolher um recém-nascido. Talvez seja por isso que as mulheres precisem de nove meses: para se mentalizarem de que vão ser mães. Eu tive quase tanto para me mentalizar de que não vou ser mãe outra vez e talvez seja essa a ideia que tenha germinado em mim. Depois, claro, assola-me a culpa por pensar desta forma. Mas, por fim, concluo que eu não tenho culpa. E não é que pense assim ou assado. Estou simplesmente a seguir em frente.

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O estagiário

Quando comecei a trabalhar em tradução, os meus trabalhos eram revistos pela colega que estava sentada atrás de mim. Eu sabia sempre que ela começava a rever uma tradução minha, porque começava a ouvi-la bater com os pulsos no tampo da secretária. Aprendi a associar aquele batuque surdo a algum disparate meu, fruto de ingenuidade, inexperiência ou distração. Às vezes, crescia-lhe uma impaciência tal que o batuque era acompanhado por suspiros e lamentos contidos, que me iam chegando por trás, como que todo o corpo reunido em conluio, fazendo crescer em mim a mesma medida de ansiedade, sem que soubesse exatamente a que se devia ou o que podia fazer para melhorar. Lembrei-me disto porque há um novo estagiário no escritório ao lado do meu. Tem ar de ainda nem ter acabado o secundário e passa a hora de almoço na mesa de reuniões, a tratar de esvaziar a marmita que trouxe de casa na lancheira que desconfio não ter sido ele a escolher. Do pouco que conheço dos senhores do lado, penso que o vão tratar bem, por muitos disparates que faça no início, que o vão ensinar e ser pacientes. Também duvido que batam no tampo da mesa sempre que encontrarem algum disparate seu, não obstante, o rapaz veio munido de auscultadores. Ainda bem para ele.

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Sala de espera

Não sei explicar a necessidade que tenho de confirmar, uma e outra vez, o número da senha que tirei no posto de admissão e de o comparar com os números que o ecrã da sala de espera vai debitando. O meu nunca mais chega e começo a pensar que o deixei passar. Assola-me uma insegurança enorme sempre que me encontro numa sala de espera. Pergunto-me se mais alguém será assim, incapaz de memorizar um número de dois dígitos, quando memorizo tantas datas inúteis ou atalhos do computador. Conheço quem nem precise de imprimir a senha, bastando-lhe olhar para o número uma vez e registá-lo na memória. Eu não. Se o fizesse, sentir-me-ia mais perdida do que um caracol num mar de cimento.

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Diário #4

Sexta-feira. Dia de almoçar no restaurante a ler o Ipsilon, mas hoje não me despertou particularmente o interesse; não sou suficientemente intelectual.

Saí do escritório mais cedo e fui buscar a camisola de crochet que tinha mandado fazer na retrosaria. A senhora devia estar a pensar que não a iria buscar; voltei lá duas vezes para mudar a cor do fio e pedir alterações, poderia perfeitamente ter-me arrependido da compra, se nem sinal me pediu; mas não, ela não sabia, mas sou de palavra. Ficou óptima e nada cara, tendo em conta que foi feita à mão, ali ao balcão de uma loja pequena que já foi uma loja de gomas e depois uma papelaria. Espero que esta senhora tenha mais sorte.

Também pedi alterações ao tatuador, que me mandou um protótipo de que não gostei. Andei às voltas na cama por causa disso. Calhou também ter tido azia por causa da salada de ovas; demasiado alho, passei o tempo a arrotar e a repugnar-me com o meu próprio sabor. Enquanto andava de um lado para o outro na casa escura, enquanto todos dormiam, de garrafa de água com gás na mão e arrotos a estalar-me nos dentes, pensei na forma como o protótipo me fez sentir; foi aquela sensação de desconforto quando estamos prestes a fazer uma coisa de que, sabemos, nos iremos arrepender. Uma tatuagem, de entre todas as coisas, não se presta a isso. Então, hoje, dediquei-me a procurar e a procurar e procurei e procurei e lá encontrei aquela imagem que fez clique. Imprimi-a, recortei-a, colei-a no braço, tirei fotos, mexi o braço de um lado para o outro, observei-o de várias perspectivas, sim, é mesmo isto. Pedi ao tatuador que alterasse o desenho e ele aumentou-me o preço. Já em casa, sinto o marido apreensivo por causa do tamanho da coisa, mas é compreensível. Ainda há pouco mais de três anos não tinha tatuagem nenhuma e, agora, já vou para a terceira. O que virá mais lá?

Fui regar e vi o livro da Ivone Mendes da Silva na caixa do correio. Caramba, que edição bonita. (Por falar em ler, li este artigo que me fez pensar.) Lá mais para a noite, vêm entregar sushi e eu talvez até beba um copo de vinho. Ah, sexta-feira!

 

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