Arrelias

Tive uma arrelia com um cliente e depois fiquei angustiada porque não fui capaz de ouvir e calar. Sou de trato fácil, simpática, de riso sincero e espontâneo, mas não suporto que me façam perder tempo e que, ainda por cima, sejam arrogantes. Como tinha de ir ao supermercado, pensei que me passaria, mas não devo ter comprado as coisas certas, porque cheguei a casa e ainda trazia a angústia às costas. Verti o resto do vinho do feriado num copo e vim escrever o meu post diário, que é uma coisa que me tem dado algum prazer, apesar de ainda só irmos no dia 7, e foi então que encontrei esta mensagem:

Sorri e pensei, olha, são as pequenas coisas. Depois lembrei-me que esta mensagem vinha com um conjunto de tatuagens temporárias que comprei há uns tempos quando andava a pensar fazer uma das minhas e queria testar o sítio. E que o facto de a embalagem estar assim desprovida de tatuagens e abandonada na secretária só podia significar que as minhas filhas lhes tinham deitado a mão. Ainda me levantei para lhes ralhar, nem deixaram uma que fosse para mim, mas depois ouvi a mais pequena pedir à Alexa para tocar António Zambujo e não fui capaz.

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Diário do Sono (2) – Piolhos, livros e séries

Tenho dormido bem na última semana, o que me deixa sempre uma acutilante sensação de desconfiança enquanto, a medo, aguardo a próxima insónia não anunciada. Mas desfruto das minhas noites bem dormidas, não pensem que não, se é que se pode dizer que uma noite interrompida para aliviar o corpo dos líquidos produzidos é bem dormida, mas não me quero queixar de barriga cheia.
(Será do Melamil?)

Regressamos lentamente às rotinas. Que digo? Regressámos subitamente às rotinas. Depois de praticamente quatro semanas de férias, divididas por dois meses, o trabalho clamava por atenção, como um bebé impaciente à espera da papa. As miúdas chegaram das férias com piolhos e devia ter dado graças por, no dia em que cheguei a casa, ter tido de adiar o banho demorado e quente por que ansiava pelo tratamento de piolhos e não devido a outro problema qualquer, como nos terem assaltado a casa ou ter recebido uma fatura astronómica para pagar, por exemplo. Mas não, fiquei bastante aborrecida e passei a semana num estado de aflição constante perante nova praga que ameaçava, como sempre, ser interminável.

Tratados os piolhos, fomos à Feira do Livro, que me deixou um amargo de boca. A Hora H é como uma espécie de corrida aos supermercados antes do caos mundial provocado por uma pandemia (parece que foi ontem), um açambarcamento de papel para a higiene mental. Não gostei e não repito. Fiquei cansada, fartei-me de correr e fazer contas, separar da lista os livros mais recentes dos com mais de 18 meses. A Feira do Livro é para passear com calma, para parar nas bancas e folhear os livros. Por isso, evito os fins de semana e dispenso os tróleis de viagem cheios de pechinchas a 50%. Ainda assim, trouxe 11 livros, mesmo sem ser na hora dos abutres, vale sempre a pena.

Em casa, vimos a série White Lotus, da HBO, que recomendo vivamente. Há algum tempo que não via algo tão bom, hilariante, mas mordaz, com aquela sátira social que deixa um desconforto no ar extinguida a gargalhada. Com personagens muito bem construídas e um final surpreendente no seu género (porque a vida é um bocado assim, quem tiver visto percebe), o único desgosto foi já não ter mais episódios para ver.

 

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Hierarquia das preocupações

Estava uma confusão de pessoas em pé no restaurante a que ontem fui almoçar. Sentei-me perto da porta, porque era a única mesa para gente sozinha, mas cedo me arrependi. Fui rodeada de pessoas que esperavam mesa ou a encomenda para levar e um ou outro que, não sabendo estar quieto, esperava numa roda viva, andando para trás e para a frente e perturbando-me a leitura. Ainda por cima, o dispensador de álcool gel estava mesmo atrás de minha mesa. Sou muito pouco social quando decido ir comer sozinha. Não só aí; sou, no geral, uma pessoa que gosta de e sabe estar sozinha. Não sei como é que, daqui a dez dias, me vou enfiar numa casa com mais cinco adultos e o dobro das crianças para umas férias no país do champanhe. Há várias coisas que me preocupam, entre elas, a ausência de sossego ou de tempo para mim, para ler tranquilamente ou ir dar um passeio a ouvir os meus podcasts. Também me preocupa a quantidade de croissants que vou ter à disposição todos os dias e as tentativas, nem sempre falhadas, do anfitrião em me manter permanentemente bêbeda. Esperam-me tempos conturbados. Isto, se conseguirmos sair do país e se ninguém se infectar até lá… Portanto, acho que a bebida e os hidratos de carbono são a mais pequena das minhas preocupações.

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Enquanto espero

Fui vacinada. Já passaram 48 horas e já não me dói o braço, mas acometeu-me uma grande preguiça. Dormi como uma pedra, o que já de si é esquisito – eu ter uma noite sem percalços -, mas passei a manhã mole e cansada, como se não tivesse pregado olho. Agora, estou à espera que o estado evolua, que comece a ter dores no corpo, sintomas de gripe ou algo mais, porque eu sou aquela pessoa que, num jantar de grupo, toda a gente come do prato de comida estragada, mas só a ela é que lhe faz mal.

Não obstante o estado dormente, ontem à noite ainda deu para terminar O Fulgor Instável das Magnólias, da Ivone Mendes da Silva, e para, mesmo antes de adormecer, sentir aquele sentimento de vazio que me preenche quando termino um livro mesmo muito bom ou descubro um grande escritor. Já mandei vir os Contos Esquivos, mas vou adiar o prazer.

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Prepotência

Pinto o cabelo ao som de Lou Reed. Foi o que a Alexa me deu quando lhe pedi indie pop (há alguns conceitos que a Alexa confunde, mas desta vez não a corrigi). Depois, tocou The Smiths, e eu dancei muito, porque não me importa se o homem é ou não é racista (há grandes discussões nesta casa sobre isso), nunca fico indiferente às suas músicas.

No outro dia, chamaram-me prepotente. Que sou prepotente e preconceituosa com a música. Eu não tenho problemas nenhuns em admitir que sou muito preconceituosa com a música e os livros, é um facto que acho que há coisas com qualidade e coisas sem qualidade e que eu me encontro, felizmente, no lado certo da barricada. Mas ouvir os outros dizê-lo é esquisito. Fez-me pensar e concluir que… não me incomoda nada ser prepotente e preconceituosa com a cultura. Incomoda-me dormir mal, por exemplo. Incomoda-me que não possa comer o que quero sem que a barriga inche como um balão. Incomoda-me que chova no meu dia de anos. Agora não me incomoda gostar de ouvir boa música e ler bons livros. Ora essa. E agora a Alexa pôs The Passenger do Iggy Pop e eu tenho de ir para a casa de banho dançar.

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