Dia 3
É domingo e ainda não nos caiu a ficha. Está sol, passamos a manhã no quintal e, ao almoço, fazemos um churrasco. Passamos a tarde a comer e a beber. Nada de novo, portanto.
Dia 4
Achei que, se me levantasse à hora a que me costumava levantar antes do isolamento, conseguiria trabalhar, pelo menos, duas horas sem interrupções. Se, em dias de escola, é um castigo para acordar as miúdas, especialmente a Alice, certamente agora vão dormir até às 9, certo?
Errado. Errado. Errado. Inês acordou às 7:20. Trabalhei vinte minutos e comecei o dia frustrada. Amanhã acordo mais cedo. De certeza que vai resultar!
Como sempre quando fico frustrada, ponho-me a fazer arrumações. Destralhámos os livros e as roupas delas e eu mudei completamente a disposição do quarto. No final do dia, estou tão cansada que não sei se amanhã consigo acordar cedo.
Dia 5
Não consegui acordar antes das 7, mas… progressos! Consegui trabalhar mais 3 minutos do que no dia anterior! Desta vez, foi a Alice que acordou cedo – a Alice que nunca conseguimos tirar da cama antes das 8 num dia qualquer. Começo a pensar que elas conspiraram isto tudo: um dia, acordo eu, no outro dia, acordas tu. Só pode.
Recebi um telefonema. Cancelaram-me a tradução de um livro que andava a traduzir há um mês. Pagam-me o que já fiz, mas agora fica tudo em standby. Foi um balde de água fria. Será que vão começar a cancelar outros trabalhos? Tenho mesmo de despachar o que tenho em mãos para entregar antes que se lembrem de cancelar.
Como parece que anda aí tudo a escrever “Vamos ficar todos bem” por cima de arco-íris pintados por mãos pequeninas, resolvi fazer isso com elas. Não correu lá muito bem. 1) Descobrimos que a maior parte da tinta estava seca e agora não dá para ir comprar mais. 2) Eu disse-lhes para porem outra roupa, não quiseram, prometeram-me que não se iam sujar, sujaram-se. 3) O desenho da Inês ficou esquisito e ela teve uma crise existencial.
Acho que não tenho paciência para estas coisas, ainda assim, a seguir resolvi fazer bolachas. Não correu mal, mas elas não gostaram das bolachas. Não percebo. O que há para não gostar de bolachas paleo super saudáveis sem açúcar??
Antes de deitar, anunciei-lhes uma nova regra: ninguém sai do quarto antes das 8 da manhã. Se acordarem, ficam na cama ou no quarto, a ler, a conversar, a fazer o pino, desde que me deixem trabalhar. Ameacei que as obrigava a comer as bolachas paleo se não cumprissem, por isso acho que vai resultar.
Dia 6
Acordei às 6:30 para trabalhar. Ouvi um reboliço no quarto, mas deixaram-me trabalhar até à hora combinada. Fiquei tão feliz como se me tivesse saído a raspadinha e fui, durante 3 horas, uma mãe exemplar. Fiz-lhes o pequeno-almoço, acompanhei-as no estudo, a seguir fomos fazer ginástica e yoga para crianças. Deixei-as ver televisão enquanto eu fiz a minha ginástica. Ah, assim sim! Que manhã produtiva!
À tarde também consegui trabalhar duas horas. Como hoje à noite o Presidente é capaz de decretar o estado de emergência e não sabemos como vai ser a nossa vida amanhã, levámos as miúdas a dar um passeio para o meio do mato. Cruzámo-nos com algumas pessoas que tiveram a mesma ideia que nós, mas fugimos para o outro lado da estrada como o diabo da cruz. Tempos estranhos estes.
Dia 7
Estado de emergência e dia do pai.
A rotina da manhã repetiu-se (aquela parte de acordar cedo e conseguir trabalhar até às 8), mas elas ainda não sabem que não há mais bolachas paleo.
Ando um bocado cansada com isto, pois ando a dormir menos quando podia dormir mais, trabalho menos, tenho medo que me cancelem mais trabalhos, já não recebo muitos pedidos e começo a fazer contas à vida.
Como me esqueci de fazer com elas qualquer coisa para o dia do pai, rabiscaram um desenho e deram-no ao pai como se fosse um tesouro.
Estudei com elas, mas hoje não quiseram fazer ginástica. Preferiram jogar ao Ticket to Ride que o pai mandou vir. Fiz um esforço hercúleo para ninguém perceber que me apetecia tanto jogar como ir para a fila do Continente. O pai percebeu, o que me valeram uns bons olhares de “põe-te fina”.
As miúdas já aprenderam que, quando o Rodrigo Guedes de Carvalho está a falar, elas têm de estar caladas. Foi difícil chegarmos a este ponto. Desde que isto começou e que nós passámos a ligar a televisão à hora do jantar, é uma algazarra pegada. Elas a falarem por cima da televisão e nós a falar por cima delas: Deixem ouvir! Coitadas. Isto interessa-lhes tanto como a mim me interessa falar de futebol, mas passamos o dia com elas, a fazer coisas com elas, a entretê-las e tentar que o ambiente seja bom, enquanto nos continuamos a preocupar com as nossas coisas de adultos como o vírus e os trabalhos cancelados e a melhor hora para ir comprar frescos e quantas horas preciso de trabalhar e como as vou espalhar durante o dia, por isso, o mínimo que elas podem fazer é estarem caladas durante o jornal da noite!
Telefonei ao meu pai. Está cheio de medo de sair à rua. Mas teve de sair, porque só tinham dois rolos de papel higiénico em casa. Dois rolos! uns com tanto e outros com tão pouco! É claro que, quando na semana passada o avisei para reforçar a despensa, não me ligou, achou que eu exagerava. Chega uma altura na vida em que somos nós a dizer aos nossos pais o que fazer e eles a não nos ligarem nenhuma. Acho que é uma forma de o universo ironizar connosco. Dei-lhe mais umas quantas recomendações. Tu tem cuidado. Tu mantém as distâncias. Tu isto. Tu aquilo. E, já agora, feliz dia do pai!
Amanhã diz que chove.