Dilemas

A Inês conta, sem qualquer ponta de queixume, mais como uma constatação dos factos, que os colegas passam os intervalos no seu rectângulo agarrados ao telemóvel, só ela é que não, porque não tem um telemóvel com cartão SIM, o que é basicamente igual a não ter. Os colegas têm cartão e dados móveis e redes sociais, até conta no Instagram com tão tenra idade, e depois passam os dez minutos de intervalo com a cabeça enfiada no aparelho a trocar fotos entre si, a jogar ou a fazer sabe-se lá o que é crianças de dez anos fazem na internet. Imagino 23 miúdos, cada um no seu canto, sozinhos, a trocar a convivência com os colegas pela companhia do telefone e penso que humanos são estes que estamos a ajudar a criar? Os pais não terão certamente visto o documentário The Social Dilemma e a escola é capaz de ter mais que fazer do que proibir o uso do telefone ou desligar a wi-fi, mas a mim preocupa-me a forma desenfreada como a internet entrou nas nossas vidas. Estamos a assistir à generalização de um comportamento viciante e a dar o nosso consentimento para isso. Em comparação, o facto de terem de deixado de medir a temperatura à entrada não me parece, de todo, grave.

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As barbies e as outras

No outro dia, mesmo que já tenha sido há umas semanas, continua a ser no outro dia, enquanto andava à procura de uma prenda para a Alice (que ainda está na fase das bonecas a quem já deixou de cortar o cabelo), passei por umas barbies daquelas que há agora em tamanho XXL. Achei-as estranhíssimas e passei à frente. Mas voltei atrás. Teria eu antipatizado imediatamente com uma boneca por representar uma mulher gorda? Não podia ser, tinha de perceber melhor. Olhei bem para elas todas, eram uns 3 ou 4 modelos, e percebi o que todas tinham em comum para além das formas avantajadas: estavam todas mal vestidas, com roupas largueironas, feias (aquilo a que chamamos de trapos) que lhes ficavam mal e não as tornavam nada atractivas. Ao lado, estavam as barbies a que sempre nos habituámos, as de cintura fina e cabelo sedoso, roupas elegantes e acessórios glamorosos. As magras, super glamorosas. As gordas, umas trapalhonas (de trapo). Devia ter tirado uma foto, mas estava com pressa e só voltei a pensar nisto mais tarde.

Isto incomoda-me bastante. Há uma tendência generalizada que todos aceitamos como normal que é a de nos fazerem crer que temos de esconder aquilo que foge aos parâmetros normais, sejam os cabelos brancos, as rugas, seja um corpo com medidas diferentes às que alguém ditou como aceitável. E nós aceitamos que nos digam o que devemos aceitar.

Eu não sou gorda. Já fui. Emagreci porque adoptei um estilo de vida saudável na sequência de um diagnóstico de saúde alarmante para a idade que tinha na altura. Faço desporto porque preciso, mas entretanto aprendi a gostar e a integrá-lo na minha rotina de tal forma que me sinto mal se a quebro. Portanto, não sinto que tenha de esconder gorduras. Também não sinto que tenha de esconder os brancos. Já deixei de pintar o cabelo e voltei a pintá-lo, porque não gostei de me ver assim. Foi um teste, um ano e meio sem pintar, mas houve um dia em que olhei para o espelho e vi uma mulher muito mais velha que não corresponde à forma como me sinto. Por agora continuo a gostar de mim morena.

Mas durante muito tempo senti que tinha de esconder a minha perna dos outros. Ainda sinto, vá. Mas estou muito melhor. Ainda assim, com toda a ajuda e força de vontade, não creio que algum dia me vá ser completamente natural escolher um vestido pelo joelho só porque me apetece, sem contar com os imponderáveis (dos quais podia fazer uma lista). Por sorte (ou resultado de um grande trabalho interior), tenho uma parte de mim muito “fuck society” que me faz revoltar-me perante as imposições da sociedade. Mas quem é que decidiu o que é que eu posso ou não usar? Mas quem é que me diz como é que eu me devo sentir? Não gostam? Pois não olhem. Eu tenho tanto direito a estar aqui – e a vestir-me como quiser – como vocês todos. Como resultado destas reflexões, nem sempre por esta ordem, costumo mandar a “sociedade” para aquela parte, ponho uma saia, levanto a cabeça, endireito as costas e atravesso na passadeira (atravessar na passadeira de saia sem sentir que ia desfalecer foi uma das grandes conquistas deste meu processo, é engraçado, porque a maioria das pessoas atravessa na passadeira sem pensar, os que uns dão como garantido, a outros dá uma grande trabalheira).

Gosto desta fase. Sinto-me livre.

Mas a fase “fuck society” não dura o ano todo. Talvez lá chegue um dia. Por agora, ainda tenho a fase oposta, em que tenho de me contrariar constantemente. Na fase em que me encontro desde antes do dia em que vi as barbies gordas, estou a passar por um bloqueio com determinadas aulas no ginásio que me transportam aos tempos da C+S. Volto a ser a miúda que nunca é escolhida para as equipas, que fica sempre para o fim, ela e os gordos. Eu e as barbies gordas. Deixei de ir a essas aulas, mas causa-me uma grande angústia (o porquê de ter deixado de ir, claro). E depois vejo bonecas à venda que se supõem ter como objetivo quebrar barreiras e estereótipos vestidas da forma como a sociedade acha que elas se devem apresentar de acordo com o seu tipo de corpo. E isso enfurece-me.

Com isto tudo, fico a pensar se deveria ter comprado o raio da boneca…

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Balanço pós-balnear

Quando estou na praia ou numa piscina, gosto de observar as pessoas à minha volta. O facto de estarmos todos de biquíni ou fato de banho, com mais pele a descoberto do que o contrário, com mais ou menos inibições, mais ou menos celulite, mais ou menos flacidez, põe-nos todos mais ou menos em pé de igualdade. Ali, somos todos iguais, porque todos partilhamos o facto de, 15 dias por ano, sermos obrigados a assumir o corpo que carregamos o resto do ano.

Já me senti mais acanhada em mostrar o meu. Hoje em dia, já me apresento com facilidade em roupas com menos tecido, principalmente no que toca ao comprimento da bainha. Gosto de andar de calções e de sentir as pernas ao vento. Não me importa se pareço muito branca no início da época, e tenho pena de quem se esconde atrás da menstruação ou da depilação por fazer para não despir os calções nem se permitir o direito de estar na praia com descontracção, sem preconceitos autodirigidos nem pudor em bambolear as carnes.

Nos momentos em que não tenho de jogar raquetes ou avaliar a perfeição dos pinos debaixo de água, observo os outros à minha volta. Famílias ou casais, estrangeiros ou turistas nacionais, ninguém escapa à minha atenção. Afinal, de biquíni somos todos iguais e o potencial de encaixar num qualquer perfil é inesgotável. As minhas efabulações são especialmente profícuas no parque aquático, onde o manancial de estudo chega a deixar-me mais tonta do que subir ao alto do Kamikaze.

Gosto de imaginar vidas e profissões para senhores grisalhos de tanga, mulheres magras com tatuagens de mandalas a espreitar atrás das alças cruzadas do fato de banho da natação, mães de três filhos completamente descontraídas na toalha enquanto os filhos, de sete, cinco e três, se vestem sozinhos, sem disputas nem implicações, como fará ela isso? Pelos seus cabelos loiros-quase-brancos, depreendo que venham de um país nórdico e imagino prontamente as crianças ordeiras a colocar gorros, luvas e galochas antes de saírem para o frio sueco que já deverá fazer-se sentir quando regressarem das férias no sul da Europa.

Mas é quando se põem a olhar fixamente para mim e para a minha perna que me ocupo mentalmente de lhes arranjar um espaço e uma vida de fantasia. Se não conseguem parar de olhar para mim, escrutinando até que ponto vai a minha deficiência, se é só no membro inferior ou se é mais profunda, analisando-me comportamentos e reacções, perscruto-as eu também, imaginando que só olham porque são ortopedistas famosos que vêem em mim um fantástico caso de estudo e que me interpelarão certamente antes que a manhã acabe com a promessa da derradeira cirurgia que me vai endireitar para sempre. Naturalmente, isso nunca aconteceu – ter sido observada na praia por um ortopedista que estivesse disposto a consertar-me – mas ajuda-me a amolecer a vontade de me indignar ou de fulminá-los com o olhar até perceberem a medida da sua inconveniência. Em vez disso, ponho-os num qualquer consultório, redacção editorial ou T2 sombrio num bairro periférico, organizo-lhes horários, listas de afazeres e menus semanais, arranjo-lhes problemas ou resolvo-lhes outros, o marido infiel, a chefe implacável, a sogra metediça, o filho adolescente, e logo me esqueço de me indignar, de me revoltar com quem olha para mim como se eu é que tivesse um problema, quando ali, desnudados e despudorados, somos todos iguais nos nossos fatos de banho e corpos medianos, vamos todos, mais cedo ou mais tarde, voltar às nossas rotinas, pôr os filhos na escola, inscrever-se em actividades, arranjar formas de deixar de ter tempo (obrigada, Eliete, por me teres aberto os olhos) para justificar passar o resto do ano a sonhar com aqueles 15 dias sem obrigações, listas ou horários. E, mais cedo ou mais tarde, acabamos todos por precisar de sermos consertados por um ortopedista fictício.

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