Já vais tarde

Aos poucos, as próprias coisas vão-se fartando da vida neste ano louco. Foram os interruptores da luz os primeiros a falhar, uns a seguir aos outros, como se tivessem combinado deixar-nos às escuras progressivamente; depois, foi a caixa do correio literalmente a desfazer-se, a tampa que se atirou para o chão, deixando à chuva as notícias que nos chegam do mundo; o ferro de engomar veio a seguir e quando chegou a vez da máquina da roupa, levei as mãos à cabeça, em pânico que se seguisse a máquina do café.

Há qualquer coisa de fatídico quando as coisas desistem da vida, especialmente quando isso acontece no final de um ano merdoso, altura em que nos pomos a fazer contas aos sorrisos que ficaram escondidos atrás das máscaras, aos abraços apertados que reprimimos, às viagens que se ficaram pelos livros e ao sonhos que voaram nos balões largados nas festas que não fizemos. Como vos compreendo, coisas, não pensem que não. Também eu estive perto de atirar a toalha, cansada que andei até aí ao Natal, sem paciência para nada. Andas a gritar muito com as meninas, disse-me ele.

Ajuda-me quando me ponho a arrumar, não as coisas corriqueiras do dia a dia, as meias, os casacos que caíram do bengaleiro, a loiça, mas as grandes arrumações, como a roupa da nova estação ou a estante dos livros. Dá-me uma espécie de propósito, é terapêutico e mindful. No meu primeiro dia de férias depois de entregar o livro, pus-me a arrumar os livros da estante da Area. Tirei-os todos da estante, limpei-lhes o pó, agrupei-os por autor, nacionalidades, zonas geográficas, os clássicos numa ponta, os técnicos na outra. Está muito cheia, disse-me. Pedi-lhe uns dias para se habituar, que quando eu voltar a precisar de me acalmar logo os arrumo como estavam. Já mais calma, no segundo dia de férias, fui sozinha almoçar à beira-mar, com um livro e um copo de vinho.

O ano acaba amanhã; as coisas foram arranjadas ou substituídas; a máquina do café não avariou; tenho uma camisola nova para a festa de passagem de ano que não vou fazer e, na minha cabeça, soa uma espécie de mesmo refrão: já vais tarde, 2020.

 

Continue Reading

Sem alarde

Estava a ouvir o Fala com Ela com o Miguel Esteves Cardoso e, às tantas, ele fala sobre a utilidade da tristeza, que serve para nos sentirmos vivos e devemos abraçá-la para sentirmos que ainda conseguimos sentir. É o meu resumo, ele não disse isto assim, mas daquilo que os outros dizem nós retiramos sempre aquilo que nos convém.

Nos últimos dias, tenho-me sentido uma espécie de traidora do meu próprio luto. Depois de duas semanas, já estava a tentar fazer yoga, já tinha voltado aos meus sumos verdes; estive apenas 20 dias sem aparecer nas redes sociais, pelo menos não com publicações próprias, e quem me vir na rua já não diz que carrego um peso às costas. Já não sinto tanto que me foi tirada uma coisa; agora sinto que foi aquilo que foi, uma inevitabilidade para a qual a ciência ainda não tem explicação.

Mas como contabilizar o luto? Ou melhor, o luto contabiliza-se? Há um número mínimo de dias durante os quais temos de estar tristes para que a nossa tristeza seja validada?

Depois ele fala sobre a necessidade de escrever para chamar a atenção. Mas eu tenho pensado nela como uma necessidade de cicatrização. Chamaria a atenção se fizesse alarde destes posts nas redes sociais. Como não faço, não sei quem é que cá vem, mas desconfio que seja ninguém. E acho que está bem assim. 

Seja como for, apetece-me retomar a emissão normal da vida. Tenho podcasts e séries para recomendar. Que a vida tenha sempre uma parte mundana onde nos possamos encher de ruído branco (mesmo, especialmente, em confinamento) .

Continue Reading

Quase tão bem

 

Tenho alturas do dia melhores do que outras, mas tenho truques, como focar-me nas eleições americanas ou preencher o tempo com algum item da minha lista mental quando chega aquela altura do dia depois do trabalho e do lanche das miúdas e dos trabalhos de casa e antes do jantar, em que ele normalmente vai correr e as miúdas vão brincar e eu ― que já não tenho gavetas para arrumar, porque já as arrumei todas, o que não é verdade, porque há sempre qualquer coisa para arrumar ― me encontro sozinha com o meu desgosto, levanto a camisola e olho para a barriga disforme que agora é só mesmo isso.

Há dias mais fáceis do que outros, especialmente porque ainda sinto uma bola na garganta que me queima e sufoca, incandescente com todas as coisas que não disse àquela médica que me atendeu. Todos os dias, revisito aquela conversa, as insinuações, a notícia dada de chofre como se eu já soubesse. Depois simulo na minha cabeça um novo encontro, em que lhe digo das boas, ou uma carta à direção do hospital, ou uma crónica de divulgação pública a denunciar a desumanização em torno do aborto espontâneo. Nada disto me faz bem, eu sei, mas não consigo evitar.

Fora isso, vou estando bem. O trabalho ajuda. As pequenas coisas também, o que parece um grande cliché. As minhas filhas, sem saberem, têm sido cruciais. Ele, mesmo que já não falemos muito sobre isso. E a minha grande força de vontade que é o meu castelo. Precisei do meu luto, mas já me estou a levantar.

Lembrei-me desta música de Ornatos. Já na altura, quando ainda não sabia que há desgostos que deixam mais marcas do que os de amor, sentia que tinha sido escrita para mim. Continuo a sentir o mesmo.

Continue Reading

Um dia, talvez seja capaz de falar sobre isso

 

Os dias depois de uma insónia têm tudo para correr mal, mas hoje foi um dia bom, pelo menos a partir da tarde. Para tal contribuiu uma série de coisas que passo a listar por ordem cronológica: consegui grelhar uma dourada do mar sozinha, eu e o grelhador, e não ficou crua nem demasiado seca; a minha filha mais velha fez-me um truque que me fez rir alto e eu não estava à espera de me conseguir rir alto tão cedo; vieram finalmente arranjar as portadas que, de tanto baterem com o vento, deixaram de se fixar, de se fechar ou de abrir, consoante o caso; também arranjaram a maçaneta da porta da cozinha e, de repente, parece que temos uma casa nova; os meus cunhados fizeram uma limpeza aos livros que já leram e não querem manter, ou não leram e não querem ler (também tenho uns quantos desses) e deixaram-me resgatar os títulos que me interessassem, o que me deixou bastante feliz como só uma mão-cheia de livros novos consegue; mudei, pela enésima vez, de sítio os móveis do quarto da costura/das brincadeiras/de hóspedes porque mudo sempre o sítio dos móveis quando preciso de arranjar um propósito e agora ando muito necessitada de um propósito. Ainda não estou satisfeita com o resultado, mas ter a meta de destralhar e organizar a minha mesa da costura é capaz de ser aquilo de que preciso para evitar dar por mim parada a olhar para o infinito, a sentir o vazio que ficou na minha barriga. Um dia, talvez seja capaz de falar sobre isso.
Continue Reading

Uma página de cada vez

O cerco começa a apertar.
Uma sucursal de um banco ao pé do meu escritório fechou; no agrupamento de escolas das minhas filhas alunos, professores e auxiliares começam a cair, que nem peças de dominó. Quase parece março, em que a cada hora nos chegavam novas e cada vez mais aterradoras notícias. Todos os dias, há alguém que conhece alguém que testou positivo. Uma mãe de uma colega da irmã de uma colega da mais velha. É pequena esta terra, em que parece que toda a gente se conhece, que toda a gente esteve com toda a gente, mesmo quando sabemos impossível darmo-nos todos com todos. Estamos a chegar àquela fase em que pensamos quando  ― e já não se ― é que nos vai calhar a nós.

Tirando isso, tento revestir a minha vida da normalidade que lhe quero dar. Li “A História de Uma Serva” em cinco dias, fruto de um fim de semana prolongado sem eventos sociais, e iniciei a leitura em família de “O Feiticeiro de Oz”, que comprei na Lello, um capítulo por noite. Gosto de ouvir a Inês a ler, acho que lê muito bem, não é por ser minha filha, e surpreende-me a capacidade de a Alice, seis anos, reter a história de um dia para o outro, mesmo que sempre me pareça que não está a prestar a mínima atenção à leitura… De resto, ando a debater-me com “O Quarto de Giovanni”, que me parece tão despido de toda a profundidade que pensava encontrar em James Baldwin. É culpa das expectativas, eu sei. Aconteceu-me o mesmo com o Manuel Vilas, que é capaz de ter sido a maior seca lamechas que me passou pelas mãos nos últimos anos.

Trabalho muito e durmo mais ou menos, enquanto me preparo para acolher novas mudança na nossa vida. Uma coisa que este ano nos ensinou é que não vale a pena ter expectativas, seja na vida seja com Baldwin, e que pouco mais nos resta do que ir lendo uma página de cada vez.

Continue Reading