Um ano depois

Faz um ano (amanhã) que as escolas fecharam e o mundo parou literalmente (o que daqui a uns decénios vai dar uns quantos livros de época, já imagino os títulos: O Ano Em Que o Mundo Parou; O Ano do Medo; E Tudo Março Levou; 2020, Odisseia na Terra; O Último Rolo na Prateleira, que a malta vai continuar a ter humor e a ser parva, não necessariamente ao mesmo tempo). Um ano depois, as escolas reabrem pela segunda vez, mas não para todos; o comércio começa a desconfinar pela segunda vez, mas ainda não para todos, e já há vacinas, mas também ainda não para todos. Este ligeiríssimo desequilíbrio é compensado por tudo aquilo que nos é negado a todos sem olhar a idade, profissão ou CAE: liberdade de andar sem máscara, liberdade de circulação e liberdade de fazer planos. Fiz contas às datas enquanto bebia o meu primeiro café-de-café desde janeiro, sentada num banco junto a uma ruidosa e movimentada estrada, do outro lado do estabelecimento onde o adquiri. Já se pode ir a um café beber café, mas o consumo não pode ocorrer dentro do estabelecimento nem nas imediações do mesmo, o que não faz assim muito sentido num país sem grande cultura de coffee-to-go. Felizmente, a autarquia já desimpediu os bancos públicos, pelo que, pumbas, me sentei num banco onde nunca me tinha sentado antes, porque a rua é feia e barulhenta e, bom, dantes – um conceito que ganhou um novo significado – havia esplanadas melhores. O café não me soube especialmente bem, porque há toda uma envolvência a considerar e o material do recipiente em que o café é servido, mas achei que devia marcar a minha posição de alguma forma, que é a de que, foda-se, já estou desejosa que esteja merda acabe, e só por causa disso, no primeiro dia em que o posso fazer, vou comprar um café num copo de papel e sentar-me a bebê-lo num banco público, que me era vedado até ao dia anterior, ao lado de um contentor do lixo, a olhar para os veículos pesados a circular a menos de três metros de mim. Felizmente, pela foto, parece que foi mais ou menos pacífico e até quase giro.

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Homestressing

Cá em casa, o pai trata do homeschooling e a mãe vai trabalhar. Foi o que decidimos assim que entrámos em novo confinamento e as escolas fecharam. Porque 1) não temos computadores que cheguem para todos, 2) eu continuo com o mesmo volume de trabalho e 3) ele tem um espírito de missão que leva inabalavelmente até ao fim sem nunca se queixar, já eu… Então, eu saio todas as manhãs para o escritório, venho almoçar a casa e volto para o escritório até por volta das 16:30, ou até ser necessário. Não me queixo. Espaireço e mantenho quase a mesma rotina do antigamente, saio de casa para trabalhar, mesmo que não veja ninguém pelo caminho, não conviva, não faça desvios desnecessários nem passe mais do que cinco minutos seguidos dentro do carro.

Hoje, foi preciso trocarmos os papéis e organizei a minha agenda para ficar com elas em casa. Tinha tudo pensado: ajudar uma a fazer a apresentação de português em Powerpoint, ajudar a outra a consolidar o jota e o guê, despachar as tarefas obrigatórias, talvez ainda dê para beber café descansada a ler o jornal digital. Qual quê. Não só praticamente todos os meus clientes se lembraram de mim e me encheram a caixa de e-mail, como a minha editora ainda me telefonou para falar sobre o presente e o futuro, com histórias sobre este e aquele e os meandros do mundo editorial, que eu adorei e teria adorado ainda mais, não me tivesse apercebido das miúdas a rondar, uma esfomeada, a outra desnorteada, torta na cadeira a olhar para o teto, à espera de uma indicação minha enquanto esmigalhava a borracha do lápis, e eu a fazer-lhe sinais para que terminasse a ficha, enquanto ia murmurando uns pois e sins ao telefone, não me diga, isto realmente, tentando concentrar-me no que me era dito ao mesmo tempo que ia fazendo sinais com a cabeça e arregalando os olhos numa tentativa vã de transmitir o que quer que fosse. Quarenta minutos depois, entrei de rompante no quarto onde estava a mais velha, mas levei com um olhar fulminante, a aula já tinha começado, bolas, e o trabalho, fica para depois, e agora tu, o que é que tens para fazer, uma pintura com cotonetes com cores feitas em casa, é o quê, mas estes professores querem vingar-se de nós? Sem hesitar, fui buscar café, curcuma e matcha, misturei com umas gotas de água e despachei uma série de cores, amarelo para o sol, verde para a árvore, castanho para o tronco, mas faltava o azul do céu, mas hoje chove, onde raio está o corante alimentar, ali, um pouco de água, mexe, já está, faz um desenho, e ela fez, com toda a calma do mundo, enquanto eu fui despachar uma tradução chata, antes de ir buscar o almoço a pé, porque o outro carro tem o pneu em baixo, na verdade, nem me lembrei, é tão chato estacionar ali, mais vale ir a pé, fui e vim, ele já tinha chegado, almoçámos, bebi café, hoje arrumas tu, fui para o escritório, trabalhei ininterruptamente até quase às seis, cheguei a casa, abri uma garrafa de vinho, tive de ouvir a boca, parece que esta semana todos os dias são sexta, mas só por causa do vinho, caneco, deixem-me em paz, tudo se faz, ou não é, e olha que o desenho nem ficou mau de todo, já o vinho podia ser melhor.

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Copo meio cheio

Eu sei que é pelo melhor e blá, blá, blá, mas não consegui evitar uma pré-crise de ansiedade quando percebi, hoje de manhã, que o fecho das escolas era mesmo iminente e que ia haver a segunda temporada do Estudo em Casa numa casa perto de si.

Como tento ser uma pessoa positiva, passei a manhã a fazer uma lista mental das coisas boas em não haver escola presencial e estarmos todos confinados em casa em pleno inverno, e pelo facto de o PM ter anunciado que, durante os próximos 15 dias, os meninos vão ficar de férias, sem a macacada das aulas zoom, a lista afigurou-se-me um bocadinho mais simpática.

Coisas boas do confinamento sem estudo em casa, por ordem cronológica:

  • Não é preciso levantar-me às 6:50.
  • Não é preciso ir ao pão às 7:30.
  • Não é preciso acordar a Alice e contornar as dezenas de “Não quero” com a destreza de um trapezista do Cirque du Soleil.
  • Não é preciso passar na escola para dar o pão à Inês às 8:50 porque, entretanto, a padaria fechou e o minimercado só abre às 8:00, hora a que já teria de estar na escola.
  • Poder passar o dia de roupa confortável porque agora é que não tenho mesmo de sair de casa.
  • Não há Estudo em Casa.

E, bom, parece que a minha lista das coisas boas acaba às 9:30. Vou ter de me esforçar mais um bocadinho.

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