Ela abordou-me no parque de estacionamento. A minha primeira reacção foi a reacção de qualquer mulher que é abordada num parque de estacionamento: desconfiar, perscrutar cada canto à procura do cúmplice que me vai saltar em cima e roubar-me o carro, ou pior, agarrar bem na mala, lembrar-me já de uma resposta antes de ouvir a pergunta que tem para me fazer, preparar-me para desatar a correr.
– Ando a pedir para comprar uma lata de leite para o meu bebé.
Ah, esta é fácil. Vou oferecer-me para lhe comprar a lata. Tenho a certeza de que vai dizer que não, porque ela só quer o dinheiro.
-Quer comprar uma lata de leite? Então, venha daí que eu compro-lha.
-A sério? – O seu rosto iluminou-se – Oh, obrigada, muito obrigada.
Raios. Eu pensava que ela não queria o leite.
Enquanto subíamos as escadas rolantes, ela ia-me contando como era difícil encontrar farmácias que tivessem aquele leite para o bebé que sofria de alergias e precisava de leite adaptado. Eu ia fazendo contas à vida, leite adaptado não é barato, ao mesmo tempo que ia mentalmente desfiando um rol de possíveis fraudes de que estaria a ser vítima:
1) A trapaceira ter-me-ia distraído junto ao carro, fazendo-me esquecer de trancar o mesmo e agora já alguém me tinha roubado o aquecedor que eu comprara há meia hora;
2) A trapaceira estaria a distrair-me com a conversa para alguém me arrancar a mala ou meter-me a mão à carteira sem eu dar por nada;
3) Qualquer outra manobra de diversão não prevista em 1) e 2).
Entrámos na farmácia e ela dirigiu-se imediatamente à secção de puericultura. Não havia o leite em questão, ter-se-ia de encomendar, à tarde já lá estaria. Mas ela não quis esperar. Pensei Já te livraste de gastar uma pipa de massa e estava pronta para me despedir quando ela me explica, com uma lágrima tímida a espreitar no canto do olho, que não podia esperar até à tarde, porque não era dali, era de Campolide e tinha vindo até Almada para se encontrar com uma mulher que lhe ia dar roupa para os três filhos, mas que não tinha aparecido. Agora não tinha roupa, nem dinheiro para voltar para casa, nem leite para o bebé, a quem dava mama, mas a mama não chegava, ela chorava muito e ainda por cima tinha alergias. Insistiu em mostrar-me as fotos dos filhos e eu vi-a numa outra vida, com base na cara, sem espinhas nem olheiras, com cabelo liso e sorriso na cara, ao lado de três miúdos sorridentes. Era um antes e um depois, e o depois era agora e estava à minha frente a dizer que tinha muita vergonha de pedir. Ela tinha um ligeiro sotaque, mas falava sem erros, como se cá estivesse há muito tempo, talvez vinda da Roménia, ou da Síria, mas estou apenas a especular. Talvez devesse ter-lhe perguntado o nome, a proveniência, mas debatia-me interiormente com a desconfiança e a compaixão. E se fosse eu? Se um dia a vida mudar e for eu a pedir dinheiro para comprar comida para as minhas filhas, à porta de um supermercado? Se o nosso país entrasse em guerra e a minha família tivesse de fugir? Se fosse eu a ser constantemente repudiada por pessoas que me podiam ajudar, mas que não queriam por pura desconfiança?
Quando é que deixámos de acreditar no Outro? Quando é que passámos a pensar só em nós, na depilação a laser que vamos fazer a seguir, uma prioridade tão de primeiro mundo?
Fui ao multibanco, levantei 20 euros e dei-lhos, para o leite ou para voltar para casa.
Dali fui almoçar, com uma bola no estômago, a recriminar-me por não lhe ter dado mais dinheiro, porque com 20 euros não compra uma lata de leite adaptado e um bilhete de autocarro. Passei o almoço todo a debater-me com fiz pouco, fiz o suficiente, procura aí no Google casos recentes de burla que envolvam leite adaptado…
De volta ao parque de estacionamento, voltei a encontrá-la. Abordava outras mulheres. Na mão, segurava uma embalagem de fraldas. Pensei que a comprara com o meu dinheiro e tranquilizei-me um pouco. Talvez fosse mesmo verdade, talvez precisasse mesmo do dinheiro para o filho. Dirigi-me ao meu carro, o aquecedor ainda no banco de trás. Ela viu-me e veio ter comigo. Queria mostrar-me o saco de fraldas que outra senhora lhe tinha comprado e agradecer-me outra vez por ter aberto a excepção; a outra senhora ajudara-a, porque eu a ajudara e agora de certeza que ia encontrar mais alguém para lhe dar o dinheiro para o autocarro. Eu tinha sido amável e ela estava-me muito agradecida. Dei-lhe um abraço e desejei-lhe boa sorte. Não lhe perguntei o nome, nem de onde era, mas vim todo o caminho de volta a pensar naquilo e na reacção automática que as pessoas (eu) têm de nem quererem ouvir quando alguém lhes pede ajuda. Assumimos (assumo) logo que nos querem enganar, mentir, assaltar, ou que o dinheiro terá a única finalidade de aplacar os vícios. Senti-me envergonhada, eu que não sei o que é a vergonha de ter de pedir dinheiro num parque de estacionamento.
Quando cheguei ao escritório, encontrei sem querer esta imagem. Não sabia que hoje é o Dia Mundial da Bondade, mas acho que agora já não me vou esquecer.