Aos poucos, as próprias coisas vão-se fartando da vida neste ano louco. Foram os interruptores da luz os primeiros a falhar, uns a seguir aos outros, como se tivessem combinado deixar-nos às escuras progressivamente; depois, foi a caixa do correio literalmente a desfazer-se, a tampa que se atirou para o chão, deixando à chuva as notícias que nos chegam do mundo; o ferro de engomar veio a seguir e quando chegou a vez da máquina da roupa, levei as mãos à cabeça, em pânico que se seguisse a máquina do café.
Há qualquer coisa de fatídico quando as coisas desistem da vida, especialmente quando isso acontece no final de um ano merdoso, altura em que nos pomos a fazer contas aos sorrisos que ficaram escondidos atrás das máscaras, aos abraços apertados que reprimimos, às viagens que se ficaram pelos livros e ao sonhos que voaram nos balões largados nas festas que não fizemos. Como vos compreendo, coisas, não pensem que não. Também eu estive perto de atirar a toalha, cansada que andei até aí ao Natal, sem paciência para nada. Andas a gritar muito com as meninas, disse-me ele.
Ajuda-me quando me ponho a arrumar, não as coisas corriqueiras do dia a dia, as meias, os casacos que caíram do bengaleiro, a loiça, mas as grandes arrumações, como a roupa da nova estação ou a estante dos livros. Dá-me uma espécie de propósito, é terapêutico e mindful. No meu primeiro dia de férias depois de entregar o livro, pus-me a arrumar os livros da estante da Area. Tirei-os todos da estante, limpei-lhes o pó, agrupei-os por autor, nacionalidades, zonas geográficas, os clássicos numa ponta, os técnicos na outra. Está muito cheia, disse-me. Pedi-lhe uns dias para se habituar, que quando eu voltar a precisar de me acalmar logo os arrumo como estavam. Já mais calma, no segundo dia de férias, fui sozinha almoçar à beira-mar, com um livro e um copo de vinho.
O ano acaba amanhã; as coisas foram arranjadas ou substituídas; a máquina do café não avariou; tenho uma camisola nova para a festa de passagem de ano que não vou fazer e, na minha cabeça, soa uma espécie de mesmo refrão: já vais tarde, 2020.