Perdas

Houve uma altura, no final do verão, em que achei que, afinal, este ano não ia ser assim tão mau e que me ia ficar na memória também por outros motivos que não simplesmente a pandemia que nos virou a vida de pernas para o ar. Tinha engravidado do nosso terceiro filho depois de dois anos a tentar. Após a surpresa inicial – porque, apesar de termos passado algum tempo a tentar, para o fim já tínhamos desistido e foi neste estado de descontracção que a coisa se deu –, ficámos muito felizes e foi inevitável não começar logo a fazer planos e a imaginar formas originais de contar a novidade às nossas filhas e ao resto da família.

Mas não houve tempo. Perdi o bebé às oito semanas e, também pela forma desumanizante como fui tratada no SNS (agora vai para casa abortar sozinha e sem apoio, e volta cá daqui a dois dias para ver “se já saiu tudo”), entrei num buraco fundo, escuro e húmido, do qual consegui sair graças à vida à minha volta que chamou por mim e me deu a mão. Já reflecti muito sobre tudo, revisitando todos os dias cada palavra da médica, os pressupostos – tão errados – em que baseou o atendimento que me prestou, a forma cruel como assumiu que eu já sabia o que estava a acontecer com o meu corpo, que inclusivamente o desejaria e para o qual teria contribuído, e como me tratou, a mim, como mais um número e à vida que se desenvolvia dentro de mim – e agora se desfazia – como um determinante indefinido: volte cá daqui a dois dias para ver se já saiu “tudo”, palavras que ecoam continuamente na minha cabeça, como um disco riscado, volte cá daqui a dois dias para ver se já saiu tudo, quando estou a tomar banho, quando estou a conduzir, quando estou a jantar, volte cá daqui a dois dias para ver se já saiu tudo, o meu terceiro filho resumido a um tudo-nada, um mero bloco de coágulos e tecidos indesejáveis, qual quisto ou tumor, uma massa inconveniente, maléfica, maligna que, no final de três dias numa espécie de trabalho de parto caseiro, me haveria de escorrer pelas pernas sem qualquer pré-aviso da forma que poderia ou não ter ― e uma das muitas conclusões a que chego diariamente é que talvez nunca deixe de ouvir estas palavras a ressoarem na minha cabeça.

Posto isto, não me consigo lembrar de coisas boas que compensem o ano de merda que tive. É claro que tenho um tecto para viver, duas filhas maravilhosas, um homem espectacular que esteve sempre ao meu lado neste momento difícil, não me falta dinheiro para o que é preciso nem desafios interessantes no trabalho. Tenho razões de sobra para estar grata pela vida que tenho, mas a minha percepção de 2020, a imagem que fica daquilo que foi o meu ano, daquilo que eu vivi e senti é, fria e simplesmente, uma amálgama de perdas: perda de liberdade individual, física e social imposta pela pandemia e a perda de esperança inerente, perda de um ente querido no final de Novembro, e o sentimento excruciante que fica após a perda de um filho (eu sei que só tinha oito semanas, mas o vazio que me deixou na barriga não é menor por isso).

Portanto, não tenho motivos para festejar o ano que passou – nem os quero arranjar para ser sincera. O que aconteceu aconteceu, é um facto inegável e nada do que eu possa fazer ou dizer vai mudar aquilo que se passou, a forma como aconteceu e o peso que deixou em mim. A única coisa que posso fazer é aprender a viver com a dor, a geri-la em mim, a doseá-la até que seja suportável. Transfiro tudo isto para a vida prática, para a máquina incansável do dia a dia, dos prazos e das datas que me fazem avançar. Tenho um livro para acabar de traduzir até ao final do ano, tenho uma mini festa para organizar à minha filha de quase dez anos daqui a três dias, tenho uma noite de Natal em que me deixam ir ver os meus pais e tenho o Ano Novo que, se calhar, vou passar a dormir. O que eu não quero é criar grandes expectativas para o novo ano que se avizinha. No ano passado estava cheia delas e foi o que se viu.

(Ele acha que preciso de falar com o psicólogo. Talvez vá, para o ano. Para o ano há de ser melhor.)

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