Quase tão bem

 

Tenho alturas do dia melhores do que outras, mas tenho truques, como focar-me nas eleições americanas ou preencher o tempo com algum item da minha lista mental quando chega aquela altura do dia depois do trabalho e do lanche das miúdas e dos trabalhos de casa e antes do jantar, em que ele normalmente vai correr e as miúdas vão brincar e eu ― que já não tenho gavetas para arrumar, porque já as arrumei todas, o que não é verdade, porque há sempre qualquer coisa para arrumar ― me encontro sozinha com o meu desgosto, levanto a camisola e olho para a barriga disforme que agora é só mesmo isso.

Há dias mais fáceis do que outros, especialmente porque ainda sinto uma bola na garganta que me queima e sufoca, incandescente com todas as coisas que não disse àquela médica que me atendeu. Todos os dias, revisito aquela conversa, as insinuações, a notícia dada de chofre como se eu já soubesse. Depois simulo na minha cabeça um novo encontro, em que lhe digo das boas, ou uma carta à direção do hospital, ou uma crónica de divulgação pública a denunciar a desumanização em torno do aborto espontâneo. Nada disto me faz bem, eu sei, mas não consigo evitar.

Fora isso, vou estando bem. O trabalho ajuda. As pequenas coisas também, o que parece um grande cliché. As minhas filhas, sem saberem, têm sido cruciais. Ele, mesmo que já não falemos muito sobre isso. E a minha grande força de vontade que é o meu castelo. Precisei do meu luto, mas já me estou a levantar.

Lembrei-me desta música de Ornatos. Já na altura, quando ainda não sabia que há desgostos que deixam mais marcas do que os de amor, sentia que tinha sido escrita para mim. Continuo a sentir o mesmo.

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