– Lês sempre assim? – perguntou-me ele, depois de eu ter acabado de ler o excerto para análise. “Pronto, apanhou-me”, pensei. “Que palavra terá denunciado a minha má dicção? Será que fui sopinha de massa?” (Há determinadas palavras, ou sequências de palavras, que, encontrando-me eu num estado menos concentrado, realçam o indecoroso roçagar da minha língua nos dentes. Vezes há em que isto me deixa bastante desconfortável.)
– Como assim? – gaguejei, tentando arranjar tempo enquanto rodava o anel entre os dedos como se fosse a corda de um relógio que eu pudesse fazer andar para trás.
– Tens voz radiofónica. Pela forma como dás entoação às frases, parecia que estava a ouvir uma radionovela.
Não era, de todo, isto o que eu estava à espera de ouvir. Isto era uma espécie de elogio e há uma certa preparação mental necessária para receber um elogio – eu não me tinha preparado. Gracejei qualquer coisa como ter passado ao lado de uma carreira na rádio e censurei-me por ter tanto medo de tudo. Já íamos a meio do curso e ainda não me tinha feito ouvir. Não lera nada meu, tão pouco me voluntariara para ler algo dos outros. É uma característica minha precisar de algum tempo para me soltar. Não havendo nada de mal nisso, o problema é que gasto a maior parte do tempo a pensar no que vou dizer e o resto do tempo a culpar-me pelo que disse, ou não disse, e acabo por nada dizer. É um processo difícil este de arrancar a culpa de dentro de mim, que nasce e se propaga sem que eu tenha mão nela. Mal comparado, é como uma praga de piolhos que se detecta demasiado tarde e que depois requer doses abundantes de tempo e paciência para catar os parasitas. Tal e qual a minha culpa. Ultimamente ando a catá-la aos poucos.
Serviu o elogio para que decidisse ler o que me fora mandado escrever em casa: uma ideia, tão somente a ideia, para um romance. Eu apenas tinha ideia para um conto, que estava quase escrito, mas faltava-lhe o fim. Comecei por desculpar-me (caramba, faço sempre isso! ) e decidi improvisar (caramba, nunca faço isso!) para dar ao ex-conto a amplitude de futuro romance.
– Caramba, isso bem escrito dava um best-seller – disse ele. (É capaz de não ter dito caramba, mas eu quis enfatizar o momento. Foi o segundo ponto alto do dia que, convém dizer, fora bastante merdoso até à parte radiofónica).
No dia seguinte, na aula de cycling, enquanto desempenhava mecanicamente os movimentos orientados pela instrutora, realizei em 45 minutos aquilo em que ando a pensar há um ano. Está tudo lá: princípio, meio e fim. Tenho cenas inteiras escritas na nuvem do meu cérebro e, agora que já sei que forma tem, o livro que há de ser vai comigo para todo o lado. E, sim, também é sobre a culpa. Ou não venha a ser um livro escrito por mim.
3 comentários
Força!!! Nunca tive coragem para me lancar nisso, mas ja sonhei muiittoooo com isso. O unico livro que escrevi é tecnico.. Não conta :(. Boa sorte!
Agora fiquei mesmo com vontade de ler esse livro ! 🙂
Olá Mónia,
Eu quero muuuuiiito ler esse livro.
Bora lá passar da nuvem das ideias para o papel.
Bjnhos