Acordo às sete, como sempre. Começo por despachar-me, enquanto a casa ainda dorme. Tomo um duche, passo creme nas pernas áridas como o Deserto de Atacama, visto-me sem grandes conceitos de moda, prendo o cabelo para não me chatear e desço ao rés-do-chão. Abro estores e portadas, dou comida ao gato, tiro os quilos de roupa interior de dentro da máquina, começo a preparar o pequeno-almoço delas. Antes de subir, ainda dou um jeito à sala e levo comigo uma série de coisas fora de sítio: um gancho, umas pantufas, uns collants, canetas de feltro sem tampa, um mealheiro. Quando chego lá acima, já a Alice acordou. Encaminho-a para a casa de banho, enquanto arrumo as coisas que trouxe lá de baixo e abro as janelas do primeiro andar para acordar a outra metade da família. Ao mesmo tempo – faço sempre tudo ao mesmo tempo – escolho a roupa da mais nova e peço à mais velha (que se arrasta da cama feita zombie) para escolher a roupa dela. Fá-lo, naquilo que pode demorar uns largos minutos, não sem antes me consultar várias vezes para saber se a camisola condiz com as calças, se as cuecas condizem com as meias, se hoje é dia de ténis ou botas, se vai chover ou fazer calor, se é dia de capoeira ou natação, e avisa-me que, a partir de agora, às segundas-feiras é dia de ginástica na escola, mas só de quinze em quinze dias, a contar a partir de anteontem – em que foi de vestido (e olha-me com um ar acusador de pré-adolescente). Justifico-me com o dia de anos da irmã, ao mesmo tempo que reflito brevemente sobre o papel que a escola desempenha na vida das famílias e concluo que facilitar-nos o dia-a-dia não faz parte das vantagens disto de assegurar a educação da prole. Ainda ontem terminámos o livro autobiográfico da Inês que tinha de ser entregue esta semana, mas ainda nos faltam um boneco de neve para decorar (com brilhantes e assim, mamã) e uma árvore de natal feita a partir de material reciclado. Para entregar até ao dia 4, não te esqueças. Antes disso, ainda há a visita de estudo, aquela que já pagámos e a outra, que não, e para a qual é preciso levar um boneco “doente”. Escolho com a Alice o boneco doente, que meto na mala dos PJ Masks, juntamente com a manta para a sesta, agora que o tempo já arrefeceu, e o livro da biblioteca. Tenho a certeza de que me esqueço de algo, mas de qualquer forma já não cabe lá nada.
Ainda no andar de cima. Tiro a roupa das camas. É dia de mudar os lençóis e é preciso relembrar a senhora da limpeza (que fez anos e tirou uma semana de férias, deixando a nossa casa num desassossego, para quem cuidadosamente embrulhei uma lembrancinha enquanto fazia o pequeno-almoço e dava um jeito à sala, uma pequena dedicatória com um beijinho) que a partir de agora as camas já querem lençóis de inverno, os quais coloco estrategicamente em cima das camas. Desço e levo os lençóis sujos para pôr na máquina, ao ombro a mala da natação que preparei entretanto, e a minha mala do desporto, para o caso de conseguir ir (não consegui). Pelo meio, arrumei uma e outra coisa, por vergonha da senhora da limpeza, escondi uma caixa com roupa de inverno que ainda não consegui distribuir pelos roupeiros e recolho os tubos de papel higiénico para fazer sementeiras.
Lá em baixo, enquanto elas comem, preparam-se os lanches e eu aproveito para tirar a loiça da máquina e dar um jeito à cozinha. “Mas a Lena não vem hoje?” Vem, mas já viste a pilha de roupa que tem para passar? Teve uma semana fora, a casa está um caos. Pelo menos a cozinha fica com um ar apresentável, para compensar a plasticina debaixo da mesa de jantar.
Pouco antes de sair de casa, é a gritaria do costume, lava os dentes, lava a cara, calça os sapatos, despacha-te, entra no carro, pega na mala, veste o casaco. Por acaso, hoje foi sem gritos, mas não me lembro bem. É que me bastou olhar para o quarto das brincadeiras, que fica mesmo em frente à porta da rua e que está prestes a atingir aquele estado impenetrável de escombros pós-guerra, e dar de caras com o saco das coisas de festa, para ter começado a pensar em tudo o que ainda tenho para fazer para a festa de anos da Alice e ter assim uma mini-crise de ansiedade. Tudo aquilo que me falta fazer. Falta-me escrever o post da Alice. Falta-me comprar uma prenda. Falta-me convidar gente. Falta-me varrer e decorar o salão de festas. Falta-me. Falta-me. As faltas são como os cogumelos que tenho a crescer escondidos na despensa: por cada tick feito, nascem uns seis ou sete. Por falar neles, tenho-me esquecido de avaliar o progresso. Mas terão de esperar. São nove da manhã e o dia só agora começou. Sento-me no carro e suspiro. Tipo…