No outro dia estive com uma amiga que não via há demasiado tempo. Daquelas pessoas com quem nos identificamos quase na totalidade, mas que as circunstâncias da vida nos separaram os caminhos, o que não é nada justo, mas a vida nem sempre o é. Adiante. Dizia que estive com uma amiga querida que não via há demasiado tempo. Quis o destino, fazendo de conta que acredito nestas coisas, que prolongássemos o almoço e acabássemos por passar o dia juntas, sentadas na varanda senhorial da sua nova casa, debruçada para os quintais de Algés, com olho no rio azul e nas corridas de veleiros, a beber um bom vinho tinto, enquanto as crianças se entretinham lá dentro com brincadeiras várias.
Como é próprio destes encontros, pusemos a conversa em dia. Então, como estás, o que tens feito, as crianças, o trabalho, novidades. Contou-me que está quase crudívora, mas que os almoços constantes com a chefe não lhe permitem abraçar a nova dieta a tempo inteiro, que bebe sumos verdes de manhã e come saladas à noite, que começa o dia a contemplar o pôr-do-sol numa espécie de meditação improvisada enquanto as crianças ainda dormem e a água quente com limão arrefece, e que tenta, tanto quanto o trabalho lho permite, levar uma vida simples e descomplicada. Nada disto me surpreendeu, nada disto me impressionou. Esta minha amiga sempre foi assim, frugal, simples e discreta, com vontade de levar uma vida descomplicada, apegada aos filhos, à família, amante das coisas boas da vida, sendo que se fala aqui de experiências, do tempo que se passa com os amigos, e não de coisas materiais. Atrás de mim, a sala, os quartos, a cozinha, que adorei, adorei todos os cantos daquela casa, eram despojados de superficialidades. As crianças tinham espaço para andar de trotineta e correr à vontade, na sala havia espaço para abrir uma tenda de índios e na brancura das paredes e nos espaços vazios em cima das coisas estava suspensa uma sensação boa de indefinição, de espaço que aguarda ser preenchido por novas experiências, novas memórias. Espaços amplos e brancos que davam uma sensação de espaço, passo a redundância – espaço para respirar, espaço para viver. Mas ainda assim, nem foi isso o que mais me impressionou. O que me impressionou realmente nela, no casal, foi a sua capacidade de estar presente, uma interpretação tosca do conceito de mindfulness. Não sei explicar como senti isto. Apenas senti que a minha amiga esteve sempre presente não só nas conversas comigo, como em cada intervenção dos filhos, numa entrega pessoal total e desinteressada. Na mesa onde colocávamos os copos de vinho, o único telemóvel era o meu, para o qual ia espreitando ocasionalmente, não se fosse dar o caso de receber uma mensagem de importância nacional num feriado (bom, na verdade, estava à espera do telefonema de outra amiga, mas se o telefone tocasse iria ouvi-lo bem, não precisava de estar sempre a espreitá-lo). Quando me apercebi disto, já em casa, ao pensar no dia maravilhoso, tive vergonha de mim. E invejei-a. Aí, sim, invejei-a realmente, pelo desapego genuíno que eu, sabendo que não o tenho em mim, apenas me esforço por cultivar. Depois lembrei-me de outros momentos passados com esta minha amiga e comecei a juntar as peças do puzzle. Ao final do dia, quando chega a casa com os filhos, tira o som do telemóvel e guarda-o na mala. Só volta a pegar nele no outro dia de manhã. As más notícias fazem-se sempre anunciar, mesmo com o telemóvel escondido, por isso não há nada que seja assim tão importante que não possa esperar pelo outro dia.
Ontem, tentei fazer o mesmo. Tirei o som do telefone e escondi-o durante duas horas e meia. Só voltei a pegar nele depois de deitar as miúdas e, se ao princípio tive vontade de o ir espreitar, no final já quase me esquecia. Não sei como chegámos a este ponto, ao ponto de ser preciso fazer uma desintoxicação digital, dos telefones, da partilha impessoal de ideias e fotografias com pessoas com quem não temos vontade de combinar nada pessoalmente, mas com quem temos uma interacção quase diária no mundo digital. Não sei como chegámos ao ponto em que precisamos de desligar o telefone durante duas horas e meia para sentir que estamos presentes durante o jantar, para darmos atenção aos nossos filhos sem distracções, para nos focarmos no que é realmente importante. Não sei como chegámos a este ponto, mas é recente. Se pensarmos bem, não tem mais de dez anos esta coisa de andarmos com o mundo dentro do bolso. Passa tudo tão depressa ultimamente. Mas nós temos o nosso lugar no mundo, não precisamos de querer estar em todo o lugar a toda a hora. O nosso lugar é apenas aqui e agora. E com esta me fico.
2 comentários
“O nosso lugar é apenas aqui e agora” tão simples quanto isso 🙂
Por estes lados o conceito de mindfulness faz cada vez mais sentido!
Adorei!